__ Mamãe, por que separado se escreve tudo junto e tudo junto se escreve separado?
            Emília tirou os olhos das couves e virou-se para olhar a bonequinha que lhe dirigia a pergunta. As miúdas lantejoulas que funcionavam como olhos fitavam-na cheia de curiosidade.
__ Bem, certamente tem a ver com a origem dessas palavras. Elas derivam do... do... do... latim.
__ O que é latim?
__ É uma língua muito antiga, falada por um povo muito antigo Hoje ninguém além dos padres fala latim. Por isso a gente diz que o latim é uma língua morta.
__ E língua morre?
__ Morre sim, se não houver ninguém que a fale.
__ Morre de morte morrida ou de morte matada?
__ Morte morrida. Não se pode matar uma língua.
__ Mas outro dia no rádio eu ouvi um homem dizendo que a garotada de hoje em dia está assassinando a gramática.
__ Língua é uma coisa. Gramática é outra. Gramática é um livro. Língua é uma coisa viva.
__ A língua é viva?
__ Se morre, então é viva.
__ Mas como, se nem coração tem?
__ As plantas também não têm.
__ Disso eu discordo. Dona Benta sempre diz que as rosas crescem mais felizes e bonitas se conversamos com elas.
__ Acho que ela pode ter razão. Mas Dona benta também diz que abóboras não devem crescer em árvores. Então não acredite em tudo o que ela diz.
__ Eu penso a mesma coisa em relação às abóboras.
            Nesse momento, Emília teria franzido o cenho, se suas sobrancelhas permitissem. E resmungando um “Francamente!” pôs-se a arrancar as ervas “doninhas” que cresciam por entre seus lindos pés de couve. Após alguns minutos de silêncio, nova pergunta:
__ Mamãe, cavalo marinho é um mamífero?
__ Não, é um peixe.
__ Foi o que pensei. Mamíferos não têm “guerras”.
__ Guelras, menina.
__ Foi o que eu disse. Mas por que chamar um peixe de cavalo?
__ Porque esse peixe se parece com um cavalo.
__ É o peixe que parece com o cavalo ou o cavalo que parece com o peixe? Se o cavalo parecer com o peixe, é porque o peixe veio primeiro, certo? O cavalo marinho tem uma esposa? Ela seria a égua marinha? Os filhos deles seriam os potros marinhos? Eu posso montar num cavalo marinho? Cavalo marinho puxa carroça ou puxa barco? Ah já sei! Deve puxar submarino! Você não acha mamãe?
            Emília não sabia o que responder. Ficou zonza com tantas perguntas. E também um pouco aborrecida.
__ Não sei, criança - disse com certa impaciência. _ Por que você não pergunta ao Visconde? Na biblioteca dele certamente há um livro que fale sobre isso.
            A bonequinha levantou-se num salto e disse à mãe: “Boa ideia. Também vou pedir a Narizinho que me leve ao Reino da Águas Claras. Aposto que o príncipe Escamoso já deve ter visto um cavalo marinho”. E saiu correndo à procura do sabugo.
__ Acho que tia Nastácia colocou macela demais na cabeça dessa bonequinha. Ou talvez eu tenha exagerado nas mamadeiras com pílulas do Dr. Caramujo. Como pode fazer tantas perguntas? Não devia tê-la mandado procurar o Visconde, é ele que enche a cabecinha dela com essas coisas. Gostaria de saber a quem essa menina puxou - disse Emília contrariada balançando a cabeça e voltando a atenção novamente às couves.

Por Lorena Fernandes, graduanda em Letras pela Univille- Universidade da Região de Joinville.

Quando o livro é contação[1]

                                                   Luisa Marinho Antunes[2]

Imagine-se uma praça e o povo entusiasmado, todo à volta do “contador de casos”: é assim a contação no Brasil, que anima as gentes e deixa os olhos abertos de espanto. “Mas eu povo peço licença/ Para lhes apresentar” E o contador começa o encantamento.

O livro de Fernando Vilela, Lampião & Lancelote (2010), começa desta forma para nos abrir um mundo mítico em que o cavaleiro Lancelote luta no sertão com o cangaceiro Lampião por artes da feiticeira Morgana. Não bastava sermos cativados pela história, o livro possui gravuras em bronze e filigranas, conjugando o texto com uma experiência visual que o júri do Prémio de Bolonha considerou como o aroma dos frescos italianos. Vencedor de seis prémios prestigiados, o livro representa o encontro entre a velha Europa medieval, lendária, regida por uma ética guerreira e de amor cortês, e o Brasil dos cangaceiros, dos cabras armados, das mulheres companheiras. A espada nua contra o rifle poderoso. Os cavaleiros da Távola Redonda e as suas damas, Viviane e Guinevere, contra o bando do Lampião (no qual não falta o Português – se calhar fugiu da Nau Catrineta), mais a Dadá Maria Pancada, Inácia Maria Jovina e a amada de Lampião, a Maria Bonita. Um de armadura e montado em garboso cavalo e o outro de couro, ar caipira, chapéu à Napoleão, no seu jegue (que é o nosso burrinho): “quem é você/No meu caminho ó faceiro/Não empesteie o meu ar”, grita Lancelote. “Ó donzelinho enfeitado/Todo coberto de ferro/ …Se eu quiser te mato agora”, replica Lampião.
E aí começa a guerra, guerra feia, de morte matada, e de honra. Já são muitos os feridos, quando se ouve uma risada. Risada? No meio da guerra? Quem mofa de nós, quase imortais, empenhados nas nossas façanhas? A pergunta é minha, não do autor, mas para lá fui conduzida por ele.
De repente, apercebem-se que trocaram de roupa, Lampião está de armadura, Lancelote veste como cangaceiro. Lampião saca da sanfona e começa tudo a dançar, reinventando os passos  - Maria Bonita com Lancelote, Lampião com Guinevere. Está armada a reinação. Se este não é um caso, meus senhores, um caso de espantar, lembrem-se dos que se juntaram à esquina, a tocar a concertina, a bailar o solidó. A música, as palavras e a batalha acabaram em “geleia/Da magia europeia/Com a ginga brasileira.” Fica de fora o batuque de África, direi eu, meu povo, e teria sido bonito ver o rei do Congo entrar por ali adentro também ele a querer bailar e ficava o Brasil completo num feitiço do sertão.

Lampião & Lancelote
Autor Fernando Vilela
Editora Cosac & Naify
Ano 2010



[1] Publicado originalmente em : Semanário A Tribuna, Funchal, O Liberal, n. 609, 2 de Julho de 2011, p. 5.
[2] Professora de Literatura da Universidade da Madeira – Portugal.

Por Sonia Regina Reis Pegoretti
            O escritor e ilustrador Celso Sisto, já premiado duas vezes pela FNLIJ como escritor e ilustrador revelação, nos traz esse reconto africano da África Ocidental. A beleza das ilustrações em aquarela de Simone Matias compõe com delicadeza a obra e mostram todo o colorido e o figurino das mulheres daquela região africana. Duas coisas chamam atenção de imediato nessa história: a primeira é o protagonismo de uma princesa negra, tão distante dos clássicos da literatura infanto-juvenil. E a segunda, a fusão de elementos míticos e humanos, o respeito sagrado aos elementos da natureza, proporcionado ao leitor emoção e aventura. O tom de oralidade na escrita completa todos os elementos de uma boa narrativa africana.
            A história começa descrevendo Abena, uma princesa como nenhuma outra. Bela e harmoniosa por natureza, era admirada por todos que a conheciam, principalmente por seu pai, o rei, que sorria cada vez que a via passar. Seus olhos tinham um brilho intenso, trazendo ao rei a certeza de que seria fácil arranjar-lhe um pretendente.
            O tempo foi passando e a notícia de sua formosura se espalhou nos quatro cantos da África Ocidental. Apareceram pretendentes de distantes povoados para ver de perto sua beleza, entre eles o Fogo e a Chuva.
            A Chuva foi logo se apresentando a Abena, vestindo seu majestoso traje típico. Já o Fogo preferiu ir direto pedir a mão da princesa ao rei, que prometia poder e vigor em troca do casamento real.
            O rei não queria entristecer a bela princesa dizendo com quem ela deveria casar, então propõe aos dois uma corrida. Quem vencesse se casaria com a princesa! A história dividiu opiniões nas aldeias, uns torcendo pela imponência do Fogo, outros para o esforço da Chuva. Só o coração de Abena já tinha um vencedor...mas isso era um segredo que ela não poderia revelar a ninguém!

Livro: O Casamento da princesa
Autor: Celso Sisto
Ilustradora: Simone Matias
Editora: Pruminho
Ano: 2009

Por Amanda Corrêa da Silva e Sueli de Souza Cagneti
 
A relação da cultura africana com a arte de contar histórias é sagrada. E em Obax (2008, Brinque – Book), do escritor e ilustrador recifense André Neves, essa relação é exaltada em uma mescla de rito e tradição que trazem à tona a essência da africanidade.
A pequena Obax – que quer dizer “flor” - vive nas savanas onde ao “anoitecer, tudo volta a se encher de vazio, e o silêncio negro se transforma num ótimo companheiro para compartilhar boas histórias”. Inventar histórias é o passatempo predileto da pequena, que constantemente se sente só. E não obstante a forte tradição oral presente em sua terra, todos acham que Obax passa dos limites ao contar sobre uma certa chuva de flores.  Assim, nossa heroína parte em busca de aventuras na esperança de encontrar novamente uma chuva de flores ao lado de seu amigo Nafisa – que significa “pedra preciosa” -, um elefante que se perdeu da manada; qualquer empatia, não é mera coincidência. O ponto alto da narrativa se dá no retorno de Obax e Nafisa ao ponto de partida, e como sabemos, esse retorno não é apenas “estar de volta”, mas sim um fazer-se presente; um renascer para o novo.
Aos poucos a narrativa vai assumindo um caráter ritualístico e poético que envolve o leitor em uma atmosfera de encantamento. É preciso destacar que este conto é autoral, mas se apropria de elementos de diversas regiões da África ocidental em sua composição – os nomes dos personagens, as cores alegres, as linhas curvilíneas, as savanas como plano de fundo, os animais nativos. Porquanto, as ilustrações só poderiam resultar neste belíssimo quadro de imagens que recriam as paisagens áridas, porém repletas de cores que exaltam alegria.
Em Obax, André Neves nos apresenta uma experiência sensível sobre a arte de contar histórias; histórias que perpassam e atravessam os tempos mantendo-se vivas nas vozes e nas memórias daqueles que se dispõem a contá-las.

Referências
NEVES, André. Obax. São Paulo: Brinque-Book, 2008.
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