Lara Cristina Victor
Isabela Giacomini
Maira de Carli
Os sete contos de arrepiar de Flávio Morais narram histórias para lá de esquisitas e cumprem muito bem o que é prometido no título: arrepiar! Que tal usar e se inspirar nesses contos para tornar o Halloween ainda mais assustador?

O plano do capeta é o primeiro conto do livro e demonstra as artimanhas usadas para separar um casal que vivia em uma união tão bonita. O plano é meticulosamente elaborado por um gato de pelos negros que tanto fez que quase obteve sucesso nas maldades contra o casal. O motivo de tal plano? A inveja da união que causava nojo no suposto “gato”. Ele, gato tinhoso, não desistiu até ver a infelicidade do casal, mas acabou surpreendido pelo final dessa história.

A lição da caveira é o segundo conto de arrepiar que Flávio traz nesse livro e fala sobre um homem que não podia imaginar a tragédia que estava prestes a viver por testar sua coragem entrando naquele cemitério e perguntando à caveira sobre seu assassino, e muito menos sobre o lugar que sua língua o levaria. E é graças a ela que aprendemos uma grande lição: há muito tempo um forasteiro tomou uma lição inusitada de um ser mais inusitado ainda. Por essa ele não esperava, o silêncio que tanto desejou nas primeiras respostas é o que o leva a mais valiosa lição: a língua

O cão-de-espeto conta a história de Pedro, o filho mais novo de três irmãos, que depois de suas maldosas ações foi amaldiçoado pela mãe, uma senhora já viúva que não aguentava mais as travessuras do filho. No auge da raiva praguejou o menino dizendo que de Deus ele não era filho, mas sim do cão.
Certo dia, quando Pedro estava pastoreando uma roça de arroz, sua mãe mandou que o filho mais velho, João, fosse levar comida a Pedro que deveria estar morrendo da fome. Tanto estava que se viu uma cena de arrepiar, o menino estava fazendo um churrasco apetitoso com a própria carne do antebraço. A mãe não acreditou no que João havia contado e mandou que o filho do meio fosse depressa, porque Pedro deveria estar com muita fome, mas dessa vez o churrasco era de suas pernas. A mãe resolveu que iria ela mesma levar a comida, pois achava que era maldade dos filhos contra Pedro. Chegando lá não acreditou na cena. O menino estava afiando os cotocos dos braços e das pernas em uma pedra e assim ficou conhecido como O cão-de-espeto, por causa dos seus ossos afiados.


Forró no inferno é a história de um velho sanfoneiro que afirmava já ter participado de um forró dentro do inferno. Contou ele, que havia tocado em uma festa que durou por três dias seguidos e ao chegar em casa se encontrava completamente esgotado. Eis então, que bate à sua porta, um cavaleiro ricamente trajado, montado em um grandioso corcel negro. Quando o sanfoneiro aparece na porta, o cavaleiro o apresenta uma atrativa proposta de tocar em uma festa, valendo muito dinheiro. O sanfoneiro reluta de início, mas acaba por aceitar. Os dois cavalgam estrada afora, até uma misteriosa encruzilhada. O sanfoneiro fecha os olhos por alguns segundos – como solicitado pelo cavaleiro – e, ao abrir, se depara com um ambiente esquisito e um calor insuportável, com pessoas estranhas e tachos fumegantes. Descobre que o convidado de honra da festa era o dono de um engenho. Mesmo diante dessa situação desagradável, o sanfoneiro se põe a tocar de forma interrupta. Sem percebeu o tempo passar, quando abre os olhos, percebe que a festa já tinha acabado. O sanfoneiro segue o cavaleiro e montando no cavalo, seguem viagem para casa, até se deparar com a encruzilhada novamente, e como da vez anterior, fecha os olhos e se depara próximo a sua casa. Pega o montante de dinheiro entregue pelo cavaleiro e pega o rumo de volta para casa. Ao chegar, é interrogado pela mulher, perguntando onde estava esse tempo todo. O sanfoneiro sem entender muito bem, responde que estava a tocar em uma festa. Sua mulher afirma que ele estara fora já faziam três dias. Ele indignado lhe conta quem era o convidado de honra da festa e a mulher com um pulo de espanto responde que o dono do engenho vizinho havia morrido faziam três dias, justamente na noite em que o marido saiu. E assim termina essa história assombrosa do sanfoneiro que tocava forró no inferno. E para os que não acreditam, ele guarda apenas uma nota do dinheiro que recebera do Satanás como prova da veracidade dessa história macabra.

Uma noite muito estranha é a história de três irmãos que haviam deixado o lar paterno em busca de um grande tesouro em algum lugar. Nessa assustadora aventura, passavam por cavernas, furnas e cadáveres despedaçados. Nada abalava os espíritos dos intrépidos jovens, exceto a aventura de uma noite que vivenciaram. Foi assim: estavam visitando uma região ainda desconhecida na floresta, onde se via enormes grotas de pedras que obstruíam o caminho. Os meninos precisavam de uma clareira na mata para descansar e preparar alguma comida. Quando estava quase escurecendo, avistaram uma velha cabana abandonada no meio do mato. Apesar do ambiente meio macabro, decidiram passar a noite ali mesmo. Abriram a porta e logo de cara tiveram uma surpresa: um esqueleto humano que estava em cima da cama. Ao ver os longos cabelos pendidos sobre a cama, imaginaram ser aquele um corpo feminino. Por estarem acostumados com cenas até piores, nada mais fizeram além de ignorar a companhia sinistra que estava por ali. Logo em seguida, começaram a acender o fogo para assar a carne de uma suculenta ave abatida horas antes. Durante o preparo da janta, os meninos conversavam entre si. Um deles confessou o enorme desejo de ter uma linda morena que lhe cobrisse de carinhos, pois faziam meses que ele não via uma mulher. Em meio às conversas, eles ouviram um barulho estranho. Era uma canção que vinha de uma voz feminina. O som foi se aproximando até que aparecesse uma bela moça na frente dos meninos. Esta então, se ofereceu para assar a carne. Os irmãos estavam estranhando muito aquela situação, porém permitiram que a moça preparasse o jantar. Não demorou muito e aconteceu um fenômeno assustador. Os olhos da moça começaram a faiscar e da sua boca saíram grande labaredas vermelhas. Apavorados os meninos saem correndo mata afora, até encontrarem uma grande árvore, da qual escalaram e ficaram lá no alto, tremendo de tanto medo. Minutos depois, a moça – que já não tinha mais a mesma aparência bela – surge como um grande redemoinho no meio da floresta, destruindo tudo que estivesse no caminho. Ela começa a subir, flutuando no ar, dando gargalhadas. Quando estava perto o bastante dos meninos, ouviu-se de longe o cantar de um galo. Eram duas da madrugada. É nesse momento que todas as criaturas sobrenaturais têm de retornar para o outro mundo. A terrível criatura grita furiosa: “isso foi o que os salvou, infelizes”, e complementa que voltará em breve, pois seu corpo ainda não havia sido sepultado. Dizendo isso, sumiu em meio a um clarão. Os rapazes mais que depressa saem correndo desesperadamente para enterrar aquele esqueleto. Após essa experiência aterrorizante, eles voltam à terra natal, sem mais tocar nessa horripilante história novamente.

A ave e o caçador conta sobre a vida de um casal, aparentemente muito feliz, que vivia do extrativismo, próximo a uma floresta. Porém, em uma época muito difícil, o marido não estava mais encontrando nada para caçar. A mulher já estava uma fera por não ter o que cozinhar e o marido, muito faminto. Cansado da situação, ele saiu para caçar o que quer que fosse e prometeu que naquele dia teriam um banquete, nem que tivesse que trazer o “filho do demo” morto para a refeição. A mulher, muito supersticiosa quis que o marido ficasse em casa, pois se proferira essas palavras era capaz de atrair alguma coisa maligna pelo caminho. Sem dar ouvidos, ele saiu para a caçada e andou incansavelmente até encontrar uma ave negra, muita estranha e desconhecida, talvez fosse um corvo. A mulher ficou assustada ao ver tão horripilante animal, mas como a fome era tamanha, não hesitou em colocá-lo no fogão. E eis que o mais inesperado aconteceu: o pássaro começou a se revirar dentro da panela com água fervente e, no mesmo instante, um grande estrondo atingiu a porta e uma criatura terrível apareceu para mudar o rumo de tudo que estava por acontecer. Depois desse dia o homem aprendeu uma grande lição e viu que o conselho de sua mulher poderia estar mais certo do que pensava e que aquilo que se fala pode ser atraído de maneiras inimagináveis.


 O poço é o último conto desse livro e fala sobre um coronel que vivia no sertão, já há muito tempo sem chuvas. Ele estava perdendo suas posses e ficando revoltado com a situação. Quase todos os moradores daquela região já tinham partido para outro local, em busca de acalento, mas como ele não largaria suas riquezas por lei nenhuma, estava ali sofrendo, junto com alguns de seus capangas. Chegou um dia que o fazendeiro notou que teria água para menos de três semanas e ordenou que seus empregados fizessem um poço. Eles cavavam a terra seca e nada encontravam, além do cansaço e da sede. Para piorar a situação, o homem era grosseiro e agressivo. Já farto daquilo tudo, gritou algumas blasfêmias a Deus e disse também que daria a própria alma ao diabo se surgisse água naquele buraco com mais de trinta metros de profundidade. Foi nesse momento, enquanto estava dentro do poço aos berros de fúria, que sentiu algo molhando seus pés: finalmente era água! Acontece que o nível ia subindo à medida que ele gritava e ninguém estava ali para ouvi-lo. Os moradores mais próximos que ainda restavam por ali foram ver o que acontecia por conta de tamanho desespero e encontraram o homem como estátua em uma terra mais seca do que nunca. Eis que a crença dos sertanejos estava certa: cuidado com o que fala; os anjos poderão dizer amém, e em outros casos, poderão ser até os demônios.

Lara Cristina Victor é aluna do curso de Psicologia na Univille. Atua como bolsista no Prolij e vê em cada criança um pouquinho de si mesma.

Isabela Giacomini é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e vê na literatura uma porta para outros universos e realidades.

Maira de Carli é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e encontra nas palavras segredos que são capazes de abrir fechaduras.



Maira de Carli
É possível trabalhar com a literatura clássica com o público juvenil? Machado de Assis é um ótimo exemplo para dizer que sim, pois sua temática é bastante atual, independentemente de ter escrito em outro século. Trabalhar a literatura realista com adolescentes pode ser uma grande tentativa de os instigarem e os deslocarem para outra época a fim de compará-la com a contemporaneidade. Que tal trazer desafios e mostrar possibilidades distintas de leituras a eles? Confira a resenha de Helena, de Machado de Assis e inspire-se para trabalhar com diferentes percepções acerca dessa obra e de tantas outras deste escritor e de demais autores clássicos, brasileiros e estrangeiros:
  
Helena, romance clássico de Machado de Assis, conta a história de uma moça que é reconhecida como filha fora do casamento por um homem bem quisto da sociedade que acaba de falecer, o Conselheiro Vale. Em seu testamento solicita que sua irmã, D. Úrsula, e seu filho Estácio, acomodem a moça, até então desconhecida pela família, em sua casa.

Helena, dona de uma delicadeza apaixonante, logo conquista a admiração de todos da casa, não só por sua beleza, mas também pelas habilidades engenhosas incomuns às donzelas simples da época, como andar a cavalo, e mais ainda pela facilidade e responsabilidade em dirigir os afazeres da casa da família. Neste feito, ganha o amor de D. Úrsula que é cuidada pela moça quando não passa bem devido a problemas de saúde.  Sua inteligência e desenvoltura astuciosa em conversar e convencer espanta a todos. Não é à toa que aos poucos ganha os olhares dos mais improváveis cavalheiros do Rio de Janeiro, inclusive de seu irmão que pouco a pouco percebe que seu amor vai muito além de uma afeição fraternal somente, paixão recíproca a Helena que a nega convencendo seu irmão de que chegou a hora de se casar, o escolhido é Mendonça, amigo de Estácio.


Apaixone-se também por esse romance misterioso, cheio de denúncias sociais: adultério, mentira, comportamento adequado das damas da época, críticas aos costumes, reflexões profundas sobre as condições humanas, pessoas tratadas como mercadoria e o casamento como jogo de interesse acordado unicamente pelo fim vantajoso.

Maira de Carli é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e encontra nas palavras segredos que são capazes de abrir fechaduras.


Isabela Giacomini
Havia um passarinho e uma menina. Eles queriam muito ser amados, como todo mundo costuma desejar. Ambos eram vaidosos, carentes, inseguros e românticos. Tinham tanto em comum que acabaram se encontrando, mas de uma maneira bastante inusitada. Tudo aconteceu no dia em que o pássaro levou uma pedrada e foi voando até cair na varanda da casa da menina, logo onde ela sempre ficava a observar a noite.

A partir desse momento suas histórias, semelhanças e diferenças se cruzam. Um vai cuidando do outro, passando o tempo juntos, apegando-se aos pouquinhos, até que estivessem se sentindo completamente amados. O passarinho estava sarando até mais rápido com tanto afeto compartilhado e, como é de se esperar na vida de um pássaro livre, já era hora de se despedir e voltar ao mundo. Afinal, lugar de pássaro é no céu e de menina é na terra. O único problema é que o amor não tem essas mesmas fronteiras.

Os dois, pela extrema relutância, resolvem que não precisam dar tchau. Estavam certos de que deveriam ficar juntos e, por isso, a menina o colocou em uma gaiola. Agora ele seria só dela e vice-versa. Tudo parecia estar perfeito, muito seguro, arranjado, mas acabaram esquecendo que o amor ficaria preso.

A obra Gaiola trata de um sentimento muito profundo e complexo que é o egoísmo e a dificuldade de se lidar com as emoções. O ato de pensar nas próprias satisfações, mas sem olhar a necessidade real de outrem, faz com que um afastamento seja evidenciado. Esse sentimento foi compartilhado com a menina e com o próprio pássaro, que ficava a espreitar o céu, mesmo engaiolado. Existia ainda o lado bom da companhia, mas também havia o da falta de liberdade.


Ao mesmo passo que o passarinho estava preso, apenas olhando o que estava além daquelas grades, a menina estava presa ao sentimento de extrema segurança, de vigia excessiva. Mas, obviamente, o amor não pode ser saudável dessa maneira, uma vez que para que ele seja duradouro, os envolvidos precisam estar felizes para que consigam transmitir isso uns aos outros. E isso não acontece apenas entre os casais, como se pode perceber, mas também entre seres que precisam de afetividade, ou seja, com todos nós. A menina, depois de refletir muito, tomou a maior decisão de todas. A partir daí ela nos mostra como precisamos deixar que o destino venha, sem se apressar sobre ele ou tentar limitá-lo, já que as coisas acontecem porque precisam, nada é tão certo que não se possa mudar e nada é tão fixo que não possa se acabar. A história dos dois, como a autora Adriana Falcão menciona, não acaba, mas abre possibilidades. E assim é a nossa narrativa na vida: tudo é possível, basta acreditar em si e deixar que os sentimentos bons prevaleçam. O livro traz reflexões muito pertinentes sobre a necessidade de se cultivar o amor, pois é ele o elemento principal nesse processo, por nos fazer pensar no outro e em nós mesmos, aprendendo com cada situação.

Isabela Giacomini é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e vê na literatura uma porta para outros universos e realidades.


Lara Cristina Victor
Hazel Grace é uma jovem menina que há alguns anos descobriu um câncer na tireóide com metástase nos pulmões. Desde então, ela precisa conviver diariamente com uma cânula nas narinas e um tubo de oxigênio preso a um carrinho de aço. Inevitavelmente, sua vida passa a ter algumas limitações por conta da doença, e junto a isso, sofrimento intenso tanto físico quanto emocional.

Um certo dia, ao perceber Hazel muito depressiva, sua mãe decide levá-la ao Grupo de Apoio para crianças e adolescentes com câncer localizado no porão de uma igreja, lá era um lugar onde todos compartilhavam suas angústias e diferentes perspectivas. E é nesse grupo, que Hazel conhece Augustus Waters, um menino de dezessete anos que por conta de um osteossarcoma teve de amputar uma das suas pernas e usar uma prótese em seu lugar.

Augustus encanta a jovem Hazel logo no primeiro contato. E a partir daí, os dias começam a passar mais intensamente, de forma que a presença de Augustus na vida de Hazel se torna essencial e inigualável.


Os dois passam a compartilhar suas vidas, assim como suas ideias e desejos. Em meio a tanto amor, e também, recaídas por conta da doença, eles partem para uma viagem a fim de realizar um sonho de Hazel. É lá que eles experienciam a forma mais pura do amor, assim como alguns atritos e desilusões.
 
A culpa é das estrelas é um daqueles romances sensíveis, capaz de nos mostrar a potência de um amor verdadeiro nos seus mais diversos aspectos. Demonstrando que em meio a tantas dificuldades, a cumplicidade pode ser a nossa maior aliada, fazendo com que os problemas se tornem pequenos e o amor seja protagonista de toda a história.

Lara Cristina Victor é aluna do curso de Psicologia na Univille. Atua como bolsista no Prolij e vê em cada criança um pouquinho de si mesma.

Sônia Regina Biscaia Veiga
Como saber quando um campo de conhecimento muda? Para Néstor Canclini, os estudos sobre o processo de hibridização auxiliam a repensar as áreas de conhecimento, pois entender a presença do híbrido modifica o modo de pensar áreas em caixas isoladas.

Com o intuito de tentar compreender como se dá alguns processos culturais híbridos, tomo como exemplo o livro Fumaça, escrito por Antón Fortes e ilustrado por Joanna Concejo, livro galego, publicado no Brasil pela Editora Positivo e traduzido por Marcos Bagno.

Para entender uma literatura como híbrida pressupõe-se que nela você não encontrará um conjunto de traços fixos. A sua identidade enquanto arte muda, no sentido que mescla áreas diferentes e até mesmo um público diferente, devido à fusão de culturas. É necessário conhecer as formas de situar-se em meio à heterogeneidade para entender os processos do híbrido.

Fumaça, à primeira vista, aparenta ser um livro “encaixado no gênero literatura infantil”, pois o seu dito visualmente se destaca perante o dito escrito. Com formato maior do “livro para adultos”, com ilustrações em todas as páginas e com poucas palavras escritas ele se encaixa no padrão do livro vendido para crianças. Eu o comprei, inclusive, num stand em que havia outros livros de literatura infantil na mesma prateleira.

No entanto trata-se de um livro com uma temática forte, vamos percebendo ao decorrer da leitura tanto escrita quanto visual que a história se passa num cenário de guerra, num campo de concentração e temos como plano final as câmaras de gás. Apesar disso, em nenhum momento o escritor escreve segunda guerra mundial, holocausto, judeus, campo de concentração ou câmara de gás. Para se entender sobre o que realmente o livro aborda é necessário ter um conhecimento prévio sobre o que foi a Segunda Guerra Mundial. Quem nunca ouviu falar em Holocausto não atingirá o nível de compreensão proposto pelo autor.

Trata-se então de um tema adulto camuflado numa linguagem infantil. Pode-se pensar que talvez por ser um livro europeu, as crianças de lá tenham uma relação mais próxima com o tema da guerra, dessa forma se contextualizam mais cedo com esse cenário. Mas sendo ou não sendo assim, não vejo como um livro possível de ser contado para crianças pequenas, talvez como uma experiência para ver o que elas entenderiam quando o guarda manda os meninos tirarem as roupas e entrarem na casa da chaminé. Porque para conhecedores do tema, ao virar das páginas já vai ficando óbvio qual o cenário do livro, mas quais ideias surgiriam de quem nunca estudou as grandes guerras ainda? É um aspecto também interessante para se pesquisar: o hibridismo de interpretações. Quais as possibilidades de pensamentos se nós já não conhecêssemos o óbvio?


Há também que se discutir o que podemos afinal considerar híbrido? Pode-se dizer que há um hibridismo presente no suporte e na linguagem utilizada, mas também a própria ilustração – belíssima por sinal, que foi o que me levou a comprar o livro – carrega elementos além do convencional. Iniciamos já na segunda e na terceira capa. O livro inicia e termina com ilustrações de fotografias antigas, possivelmente de pessoas e de famílias judias, anteriores ao holocausto. Como em álbuns antigos, as fotografias estão cobertas com uma espécie de papel seda. E esse papel aparece dobrado. Comumente trabalho com as minhas turmas de ensino médio com esse livro. E em todas as turmas que já o levei, ao abrir o livro, algum aluno diz, professora dobrou a página ali, quando respondo que é a própria ilustração assim, alguns precisam passar a mão no livro para ver que não é possível desdobrar a folha porque é um desenho. É algo que apenas ver com os olhos não é o suficiente.

Além disso em várias páginas tem rabiscos de caneta, que eles perguntam se alguma criança riscou meu livro e mais uma vez não acreditam que é da própria ilustração, “fala sério, professora isso aí foi uma criança que pegou uma caneta e um lápis de cor e começou a rabiscar teu livro quando a professora não estava perto”. Dessa forma, em todo o livro apresenta-se dois tipos de ilustração. Uma mais elaborada, se é que pode se assim dizer, com lápis aquarela, bem desenhada e contornada, a qual representa a vida das pessoas naquela situação. E outra que parece ter sido feito depois de impresso, como rabiscos, números e desenhos infantis retratando a interferência da criança, visto que o livro é todo narrado em primeira pessoa, com um menino contando seus dias. Por vezes, o enredo dessa narrativa se aproxima ao do romance “O menino do pijama listrado” de John Boyne, principalmente na cena final.

Há então além do híbrido do suporte escolhido para carregar uma temática pesada, o material utilizado na ilustração e o jogo que a ilustração faz trazendo a ideia de que houve uma interação prévia de um possível pequeno leitor que deixou sua marca no livro. Dar a ideia de que uma criança usou o livro como folha de papel, dessa forma o estragando traz uma ideia de proibido, de não ser o lugar para isso, de ter algo errado. Da mesma forma que a criança retratada na história, que em nenhum momento é dado um nome, porque não precisa, ela não é uma personagem de um livro, ela representa milhares de crianças que viveram aquela mesma vida, também não estava em seu lugar. E querer simplesmente desenhar, atividade própria da infância, é algo que virou proibido. Mas na vida real não ocorre o fim de um livro, mas sim milhões de fins.

O processo de hibridização surge a partir da criatividade, como aponta Canclini, no fundir de estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas, o que acaba por relativizar a noção de identidade. Podemos rotular este livro em um gênero específico e dele não mais sair? Para entender essa nova cultura é preciso aprender a procurar em novos lugares e até mesmo em não lugares, criando o novo.   

Sônia Regina Biscaia Veiga é graduada em Letras pela Univille, é contadora de histórias e atua como pesquisadora voluntária do PROLIJ

  
Tecnologia do Blogger.