Isabela Giacomini
Ana tinha muitos pares de sapatos e o melhor de tudo é que eles tinham vida. A cada sapato que ela colocava, mais colorida ficava a casa, as brincadeiras e a sua relação afetiva com os pais. No entanto, chegou o grande dia de ela finalmente ir para a escola, já era uma menina crescida. Ana não sabia se ria, se chorava, se estava emocionada ou assustada, era muita coisa para sua cabecinha.

Ela foi então apresentada a um novo par de sapatos, que era utilizado pelos estudantes da escola. Ana, contudo, sentia-se muito estranha por usar aquele sapato padronizado e deixar os seus coloridos e divertidos de lado, esquecidos nas estantes. Aos poucos, suas brincadeiras não eram mais tão legais e tão coloridas, a professora Jandira também não colaborava muito: era rude e autoritária, não deixava que as crianças fizessem um barulhinho sequer.

Mas toda a situação mudou quando Jandira ficou doente e uma nova professora veio para substitui-la em algumas de suas aulas. E é justamente por essa mudança que as crianças começam a pensar diferente e a ver o quão a relação na sala de aula pode alterar todo o humor em quaisquer espaços.


O livro A menina que sonhava com os pés traz uma crítica implícita à padronização e ao corte criativo que a escola e muitos professores acabam fazendo em seus alunos, tentando tornar as crianças iguais, enquanto elas precisam manifestar suas habilidades de diversas maneiras, sejam elas pelos pés, assim como fazia Ana, ou não. Os sapatos de Ana representam a capacidade que as crianças têm de inventar, de imaginar e de se divertir das maneiras mais simples possíveis e que as relações sociais interferem fortemente nesse processo, já que a criança está desenvolvendo sua psicossocialidade. Chritian David, além de trazer críticas e reflexões bastante pertinentes, faz com que a criança se identifique nesses momentos criativos e queira usar diversos sapatinhos, meias e tantas outras coisas diferentes a cada novo dia, afinal, expressar a arte faz parte, principalmente na infância! Sem contar, é claro, na delicadeza dos traços da ilustradora Martina Peluso, que tornam a obra ainda mais divertida!

Isabela Giacomini é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e vê na literatura uma porta para outros universos e realidades.

Nicole de Medeiros Barcelos

Nós temos contado histórias desde o princípio da nossa existência. Antes que as palavras estivessem convencionadas pelo uso, ou dicionarizadas e gramatizadas nos livros, a humanidade já dava cor às suas narrativas de diferentes formas: em suas paredes, em suas danças, teatros, rodas de contação... Nunca realmente deixamos nada disso “para trás”, mas nossas formas de materializar esse ato tão próprio ao humano certamente se reinventaram no curso dos muitos anos que nos separam (ou nos unem) aos nossos antepassados.

Em “O cântico dos cânticos”, Ângela Lago explora as possibilidades narrativas em diversas dimensões da experiência estética: da profundidade de suas ilustrações à própria maneira com que podem ser (física e metaforicamente) lidas por aqueles que ousarem abrir uma de suas capas, há muito a explorar pelos meandros da história – ou histórias – enredada por Lago.

Nesta obra, independentemente da face que segure para si, o leitor acaba encarando a mesma capa dourada estampada pelo título em duas meias luas. É tudo parte do jogo que o livro começa a propor antes mesmo do primeiro virar de páginas – isso porque O cântico dos cânticos pode ser lido de trás para frente, de frente para trás, em pé ou de cabeça para baixo, e por onde mais se desejar. Aqui não há em cima ou embaixo, ou frente e trás, a bem da verdade. Estamos livres para escolher que histórias queremos ver contadas.


Engendrada de maneira circular em uma sintaxe visual intrigante, pode-se dizer que a narrativa adota duas perspectivas básicas, dependendo da “ponta” em que se comece a lê-la: de um lado, a da personagem feminina e, do outro, a da personagem masculina. De ambos os lados, porém, acompanhamos narrativas sobre encontros, desencontros, sobre o amor, a ilusão amorosa e suas consequências, às quais o próprio leitor dará os sentidos e significados diversos a partir de sua(s) leitura(s).

Ângela Lago consegue criar tal efeito pois as belíssimas imagens que contam essas histórias foram criadas a partir de uma estética inspirada pelo trabalho de Maurits Cornelis Escher, bem como pelas tendências da arte impressionista (como Uma tarde de domingo na Ilha de Grande Jatte, de George Seurat) e expressionista (como Noite estrelada, de Van Gogh) e pela arte árabe e mulçumana. Dessa forma, o próprio texto imagético reproduz e assimila o contexto da história e apresenta ilusões visuais para o seu leitor (que não é necessariamente apenas o infantil).

A beleza da narrativa em si também encontra outras motivações. Muitos provavelmente talvez concordem que o título da obra – O cântico dos cânticos – soa um tanto familiar. Isso porque o poema bíblico de mesmo título de fato foi uma das inspirações da autora para a criação do livro: Lago, arrebatada pela poesia desse texto da tradição cristã, e principalmente pelo seu discurso sobre o amor, resolveu contar, à sua moda, uma história tão bela quanto a sua fonte de inspiração, materializada finalmente nessa narrativa sem palavras que, porém, tem muito a dizer.

Ao estabelecer essa multiplicidade de diálogos, seja no formato do livro, na sua relação com o seu conteúdo, ou seja na construção de suas imagens, e nas relações que estabelecem intertextualmente, a autora mineira reitera o caráter essencialmente híbrido e inovador de sua obra – aqui entendendo “[...] por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2008, p. XIX).

Pois, combinando elementos conhecidos – um poema bíblico, estéticas artísticas legitimadas pela sociedade e a própria materialidade do objeto livro – Ângela Lago nos presenteia, como sempre, com uma história estranha o suficiente para nos ser muito familiar.

*Felizmente, O cântico dos cânticos, lançado primeiramente em 1993 e reeditado em 2013 pela editora Cosac Naify, foi adicionado ao catálogo da SESI-SP Editora em julho de 2018 e está de volta às livrarias!

Referências

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Edusp: São Paulo, 2008.

LAGO, Ângela. O cântico dos cânticos. Cosac Naify: São Paulo, 2013.

Nicole de Medeiros Barcelos é graduada em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa), vive se perdendo em buracos de coelho e em estradas de tijolinhos amarelos.

Isabela Giacomini
Lara Cristina Victor
As histórias, de um modo geral, têm muita coisa para contar e também há muito a ser desenrolado, como os próprios fios costumam fazer. Mas, algumas delas, falam deles e das linhas literalmente, já que se constroem pela tecitura, sendo ela a matéria e o conteúdo principais. É pelo percurso que esses fios fazem que o enredo vai se constituindo, que as ilustrações vão sendo formadas e que as memórias vão sendo relembradas. Os fios e as linhas estão para além do ato de costurar meros pedaços de tecido, eles possibilitam que novas histórias sejam descobertas, que se transformem ou que também sejam desmanchadas. É justamente por esse poder que possuem de dar a continuidade dentro de cada narrativa que separamos uma lista de livros que as trazem como protagonistas. Confira a seguir:

A manta, de Isabel Minhós Martins, com ilustrações de Yara Kono – na casa da avó havia uma cama enorme, enorme mesmo, onde cabiam meninos, meninas, gatos, um cão e a vovó também, é claro. Ela não era muito confortável, mas isso acabava não importando, pois havia a manta cheia de retalhos que os cobria confortavelmente. Cada um deles era uma história para ser descoberta. Cada pedacinho escondia uma viagem maravilhosa pelo universo da imaginação. Deve ser por isso que houve até briga para ver quem ficaria com ela, afinal ainda há tanto tecido para ser explorado!


Vestido de menina, de Tatiana Filinto, com ilustrações de Anna Cunha – o vestido da menina é repleto de fios diferentes uns dos outros. Eles vão se modificando a cada conversa, a cada situação vivenciada e a cada novo lugar visitado. Alguns fios são compridos, outros curtos, enrolados, escuros, emaranhados, grossos, esfuziantes e tantos outros adjetivos que se possa dar. Às vezes havia tantos fios, que o vestido ficava até pesado de vestir! O mais legal de tudo é que cada um deles tem uma nova história para contar...

A moça tecelã, de Marina Colasanti – Ela acordava ainda no escuro, e logo sentava-se ao tear.
São nos delicados fios, pentes, lãs e cores, que essa linda história acontece. Mostrando-nos as possibilidades de ser, estar e sentir, assim como a possibilidade de um recomeço. De um novo caminho. Um novo dia. Um novo amor… E uma nova história. A moça tecelã nos dá a oportunidade de construir e desconstruir, de imaginar e reimaginar. A coragem de criar, mas também de desfazer. E de ir tecendo a vida com fios e cores que brilham e nos transbordam, exatamente aqueles que nos fazem realmente felizes.


Além do bastidor, de Marina Colasanti- Uma menina corria todas as manhãs ao bastidor para bordar coisas diferentes. Imaginava uma flor, pegava a agulha e a linha e a bordava. Com o passar do tempo aquele tecido estava repleto, tudo parecia ter muita vida e muita cor. A menina já fazia parte de toda aquela paisagem, já se deitava na grama, apreciava as frutas, andava a cavalo. Ela era a única a não estar no pano, entre fios e linhas, pelo menos por enquanto. Além do bastidor fala dos nossos sentimentos e de como eles são exteriorizados, de como entramos e lidamos com cada uma de nossas experiências, de como bordamos nossa existência e também de como arrematamos a linha.

Colcha de retalhos, de Conceil Correa da Silva e Nye Ribeiro Silva, com ilustrações de Semíramis Paterno – Felipe é um neto que ama visitar sua avó, pois lá tem muita coisa para fazer. Um dia sua avó se pôs a costurar alguns retalhos que sobraram de suas costuras antigas e o neto, é claro, quis ajudar. Começou a separar cada pedacinho pelas suas características e a cada um, uma memória era relembrada por ele e pela vovó. Os dois conversavam sobre cada tecido, para que fim ele foi usado, quando isso aconteceu e o que fizeram na ocasião. Aos poucos, uma bela colcha de retalhos surgia, com muitas histórias diferentes a serem desvendadas. Além de toda a beleza das memórias, o livro trabalha com um sentimento muito único- a saudade, mostrando o quanto essas histórias a despertam e nos fazem entender o que ela realmente significa.


Isabela Giacomini é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e vê na literatura uma porta para outros universos e realidades.

Lara Cristina Victor é aluna do curso de Psicologia na Univille. Atua como bolsista no Prolij e vê em cada criança um pouquinho de si mesma.


Fernanda Cristina Cunha
Há no homem moderno, como houve no homem ao longo de toda a história, a necessidade da imaginação para lidar com as situações angustiantes do ser, como as angústias das relações humanas e da finitude da vida. Se podemos dar uma justificativa para a existência do encantamento, da arte e da metafisica é a possibilidade de através delas encontrarmos um sentido à nossa existência e às nossas angústias.

Essa necessidade, como dito anteriormente, sempre existiu. Contudo, conforme Mocellim (2011) é a partir da obra de Max Weber que podemos compreender o movimento de desencantamento do mundo como um processo em que, por meio da religião, ao incorporar limites entre o espiritual e o profano, e da ciência, por considerar qualquer vertente do encantamento, irracional, resultou na desmagificação e perda de sentido da pratica do ser.

Esse movimento de desencantamento perdurou por conta da força do pensamento religioso, científico e tecnológico exercido sobre a sociedade contemporânea. Contudo, estes não foram capaz de dar fim ao anseio dos homens por encantamento. Em parte, pela incapacidade de lidarem com a angústia do propósito da vida, em parte, por limita-la. 

Em virtude disso, a volta dos elementos imaginativos na forma como construímos nossa visão de mundo, conceitua-se como reencantamento do mundo. Segundo Rocha (2014 p.3), o movimento de reencantamento do mundo pode ser definido como “a inversão do processo de desencantamento”.
A distinção do reencantamento, para o que existia antes do desencantamento, é de que esse movimento, se manifesta agora, aliado aos novos paradigmas da ciência. Ou seja, você não remove a ciência, mas inclui a magia a ela no processo de reencantamento.

Entretanto, esse movimento pode ser compreendido de diferentes formas e diferentes intensidades, seja na literatura, cinema, e tantas outras formas de expressão da arte. A partir da entrevista de Mia Couto concedida a Eliane Brum e Raquel Cozer em 2014, podemos observar que o movimento de reencantamento é lento. Isso fica em evidência diante a argumentação do escritor moçambicano de que o modelo de sociedade e pensamento atual impedem que vejamos o encantamento e o sagrado nas coisas.

O autor rememora também que as crianças trazem consigo uma espécie de tentação ao encantamento, uma vez que o interesse pela história do mundo a sua volta não é reduzido a apenas explicações racionais ou cientificas. E é diante a união dessa linguagem encantada, artística e poética, tão natural às crianças, à linguagem cientifica, racional e técnica, tão enraizada na contemporaneidade, que o presente ensaio busca aprofundar o hibridismo dessa mescla no reencantamento do mundo, diante obras “A mãe que chovia” de José Luís Peixoto e “Fita verde no cabelo” de Guimarães Rosa.

O reencantamento do mundo como remédio para a angústia das relações humanas e da finitude da vida:

A hibridação do concreto, e científico com a magia e o metafisico é poeticamente experencializada na obra “A mãe que chovia”. Nela, um menino que, sendo filho da chuva, e com uma mãe tão importante e necessária ao mundo, tem de aprender, a duras penas, a partilhar com o mundo todo o seu cuidado e dedicação. E, principalmente, lidar com a saudade, angústia e tristeza nos momentos em que ela está ausente. Essa mãe por outro lado tendo um mar de obrigações vê-se compelida a se ausentar por longos períodos de seu filho, e com isso lida com sua própria tristeza, culpa e angústia.
Através desse percurso, entre o real, ou seja, os desafios das relações entre mãe e filho, e o metafísico, isto é, a natureza dessa relação.  O autor presenteia aos leitores uma lição de generosidade, empatia e amor. 


Podemos também enxergar percurso semelhante na obra “Fita verde no cabelo” de Guimarães Rosa.  A Chapeuzinho Vermelho, nesta obra de Guimarães Rosa, chama-se Fita Verde. E com pequenas semelhanças ao conto de Charles Perrault, cria uma atmosfera encantada ao longo das mais ou menos 30 páginas de narrativa. Contudo, esse encantamento vai dando espaço à realidade da natureza humana. Nossa Fita Verde precisa aprender a conviver com a dor das relações, da possível perda e com o luto quando por fim ela ocorre. A poesia e o encantamento da obra atrelada à menção da finitude da morte, gera, ainda que emocionalmente triste, um rememoramento de que a morte existe, e de que ela é uma das poucas certezas da condição humana.  

A representação poética, especialmente na literatura infantil, seja ela acerca da da finitude da morte, ou das relações familiares e sociais torna mais tangível a sensibilidade humana com relação às angústias da existência de ser.

O mundo, como um livro, pode ser explorado e decifrado. O espaço ao nosso redor possui um significado e cada paisagem conta uma história. Reduzir a realidade o nosso entorno ao âmbito científico é reduzir as realidades do qual podemos ter contato.  Viver apenas uma realidade seria insustentável, e por meio da literatura, religião, filosofia, arte, e tantos outros campos do saber temos acesso às mais diversas realidades. E, como rememora Duarte Junior, (1994, p. 94) “é indevido compará-las pretendendo-se a superioridade de uma em detrimento das outras”.

Fernanda Cunha é graduanda de Psicologia pela Univille. Atua como bolsista do Prolij e busca através dos livros que lê as longas caminhadas por dentro de si mesma.

Referências:

DUARTE JUNIOR, João Francisco. O que é Realidade. Brasiliense: São Paulo, 1994.

MOCELLIM, Alan Delazeri. O Reencantamento do Mundo: considerações preliminares. 2011. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2018.

MIA COUTO - Pelo reencantamento do mundo. Fronteiras do Pensamento. São Paulo: Telos Cultural, 2014. Disponível em: “https://youtu.be/zyqnqvGLB3w”. Acesso em: 29 jul. 2018.

PEIXOTO, José Luís. A Mãe Que Chovia. Ilustração: Daniel Silvestre da Silva. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2016.

ROCHA, Emmanuel Ramalho de Sá. Expressões literárias do reencantamento do mundo: Promethea de Alan Moore. 2014. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2018.

ROSA, G. Fita Verde no Cabelo: nova velha história. Ilustrações: Roger Mello. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.





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