Isabela Giacomini

Leila saiu para nadar no mar, estava se sentindo muito bem naquele dia. E tudo realmente estava, até que encontrou seu vizinho Barão, que forçava uma relação de proximidade da qual ela não gostava. Barão a chamava de “Pequena”, mesmo que não tivesse lhe dado liberdade para isso. A situação ficou ainda pior quando ele lhe deu um beijo no rosto e disse que a acompanharia no mar. Leila estava se sentindo extremamente mal, mas não conseguia expressar, estava tomada pelo medo.

Barão não parou por aí, ficou tentando lhe seduzir, falando que não gostava de seus cabelos daquela maneira e tocando nela, até que Leila teve seus cabelos cortados, simplesmente porque ele julgara como sendo melhor daquela forma. Seus cabelos eram muito importantes para si, e agora estava em sua mais profunda tristeza. Barão continuou falando coisas para ela, nojentas, que a angustiavam. Pediu ainda que o que acontecera ficasse apenas entre os dois. Leila já não estava bem e não queria nadar, foi afundando cada vez mais. Aquela experiência negativa ficaria nela para sempre.

Depois de um tempo, Leila viu Barão novamente e um turbilhão de sentimentos e de pensamentos passou pela sua cabeça. Tomando todas as suas forças, disse tudo aquilo que vinha sendo sufocado. Ela jamais quis ser tocada, ter seus cabelos alterados, ser acompanhada por alguém sem sua vontade, ser beijada e ouvir todas aquelas coisas. Sua voz tomou conta do fundo do mar, aprisionando, dessa vez, Barão.

Tino Freitas e Thais Beltrame se valem de uma forma de alegoria, utilizando animais: uma baleia e um polvo, para tratar de uma temática extremamente forte, mas necessária: a violência sexual. O texto verbal e o visual dialogam de modo a abordar o assédio de uma maneira sutil, metaforizada pela relação entre polvo, animal forte e de aspecto grotesco e a baleia, com sua sensibilidade e ingenuidade. Leila traz à tona que esta é uma realidade em tantos outros lugares e que elas precisam ser compartilhadas. Para isso, assim como ela teve apoio de uma rede de amigos, as crianças e jovens que são submetidos a essas condições, também precisam, para que possam se fortalecer e se encorajar para denunciar.


A ilustração traz ainda outro elemento muito peculiar: uma ostra, que está gravada na capa através de um recorte intencional e também que permeia as páginas do livro, tecendo um fio condutor à narrativa paralelamente. A ostra da capa fica evidenciada, mas quando ela é desdobrada, surgem muitas outras, mostrando que essa é a história de apenas uma Leila, entre tantas.

Com uma temática difícil de ser tratada e de ser digerida pelos leitores, Leila mostra uma possibilidade de mostrá-la de forma extremamente inteligente, sutil e literária. Os autores, por sua vez, tiveram grande ousadia e coragem em trazer a violência sexual para a literatura infantil, desmistificando aquilo que pode ou não ser falado com as crianças e reiterando que as questões da sexualidade permeiam a humanidade e que, por isso, também devem fazer parte das discussões. 

Isabela Giacomini é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e vê na literatura uma porta para outros universos e realidades.
No dia 20 de março comemoramos o dia internacional do contador de histórias, mas o agradecimento  e as parabenizações não deve se restringir a esse dia, por isso aproveitamos para enaltecer o trabalho de todos os contadores de histórias que levam suas narrativas a lugares diversos e tornam o cotidiano de tantas pessoas mais leve e poético. Ao contar uma história, estamos também dando aos nossos ouvintes a oportunidade de viver outras vidas possíveis, acessadas pelo contato com a arte!


Estamos vivenciando uma época muito difícil, de muito nervosismo e apreensão, mas tudo isso vai passar, o importante nesse momento é ficar em casa e aplicar todas as medidas de prevenção! E para deixar nossos dias de isolamento social mais animados e literários trouxemos vídeos de 3 de nossas contadoras de histórias! Confira a seguir:


Fernanda Arruda conta"O vento que me voa", de Jura Arruda


Alcione Pauli conta "A festa da moça nova", de Daniel Munduruku


Ana Carolina Schlichmann conta "Menina bonita do laço de fita", de Ana Maria Machado







Ana Luíza Silva Sanches
Com o uso de cores simples, mas significativas, como o preto, amarelo e branco, O livro do medo, da escritora argentina Raquel Cané, trata da temática do medo com um viés distante do descaso e do tabu. A escritora articula as cores nas ilustrações da mesma forma que representa a existência do medo em diversas maneiras, sejam elas reais ou imaginárias, grandes ou pequenas, tendo apenas em comum o fato de nos assustarem.

Direcionado à pessoas corajosas o suficiente para mergulhar de cabeça ou à pessoas amedrontadas, a obra de Cané é o empurrãozinho que muitas vezes precisamos para enfrentar os nossos medos, para nos confortamos sobre o ritmo da vida e reconhecermos que é por meio desse processo que somos capazes de crescer e amadurecer, abraçando as nossas falhas e ressignificando-as em algo positivo.
O medo é necessário à vida, ele se fundamenta no processo de amadurecimento, se constrói pelo sensível e se fortalece em laços de relações humanas que nos libertam das nossas prisões interiores por meio das emoções, da leitura e da arte. Perder o medo do medo significa se desvencilhar da escuridão e apostar na coragem que é nossa, mas carece de encorajamentos.

A narrativa se constrói através da sensibilidade de encarar o medo como uma passagem necessária à infância, em que a criança, ao vivenciá-lo, evidencia o processo de entendê-lo a ponto de se fazer possível o seu enfrentamento, resultando na resolução dos conflitos internos e na superação das dificuldades encaradas como consequências do medo.

Conforme a história, esse medo pode ser acionado pela solidão, pela exposição ao mundo lá fora, pela incapacidade de enxergar ou de sentir, de perder-se ou de não conseguir compactuar ao afeto do abraço e à clareza do som das palavras. Esses medos, independente do quais sejam ou de que forma são estimulados, provocam um sentimento de fragilidade que nos privam de experiências a serem vivenciadas, experiências essas que podem resultar em algo vantajoso à construção do ser, do entendimento de si e dos outros.


Na obra, tal como na vida, essa compreensão é comumente impulsionada pela presença de outra pessoa, sendo, no caso, representada pela figura da mãe da personagem. Percebe-se, então, que o processo de compreensão e enfrentamento do medo se torna mais fácil e claro quando exteriorizado em um base de apoio, sendo possível lidar com sentimentos que assombram por meio do diálogo com alguém que esteja disposto a auxiliar em questões que, muitas vezes, nos parecem invisíveis ou passam despercebidas.

Nesse sentido, a troca de contato é responsável por encorajar a personagem à enfrentar os lugares escuros, impossíveis de enxergar, para se deparar com a esperança de um lugar colorido, com pássaros, sons, cheiros e sensações que ressignificam o ato de viver. Entende-se, pela obra, a necessidade do enfrentamento e da compreensão desse sentimento que amedronta e provoca frios na barriga e batimentos acelerados, pois, quando nos tornamos fortes e sensíveis o suficiente para enfrentá-lo, compreendemos a beleza da vida, que é, como a própria escritora finaliza, ‘’’bela, inteira e infinita’’ (CANÉ, p. 29).

Ana Luíza Silva Sanches é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como voluntária no Prolij e vê na literatura uma das formas mais sensíveis de se expressar e se (re)ssignificar.


Luca tinha medo do escuro, mas eles moravam na mesma casa. A casa era grandiosa, cheio de lugares misteriosos onde o escuro sempre podia estar escondido: no armário, atrás da cortina do banheiro, na escada durante a noite e principalmente no porão, mesmo ao longo do dia. O menino, muito esperto e ainda muito pequenino, fazia visitas ao escuro ao longo do dia, para que à noite ele não saísse do porão e viesse visitá-lo.

O escuro toma a dimensão de uma personagem na narrativa e chega até mesmo a se comunicar com o menino, deixando-o ainda mais assustado. Porém, em uma certa noite, o escuro saiu do porão e decidiu entrar no quarto de Luca, dizendo que havia algo para lhe mostrar. O menino, sabendo exatamente quais eram os locais que o escuro adorava se esconder foi logo palpitando: atrás da cortina do banheiro? Não! Dentro do armário? Não! Lá em baixo? Sim! E com mais medo do que nunca, desceu as escadas e o seguiu, indo em direção ao tão temido porão. Era algo que nunca sequer tivera coragem de fazer antes, visitar o porão à noite era certamente a maior aventura de sua vida.


O escuro pediu que o menino abrisse a gaveta de uma cômoda e lá estava sua maior surpresa: uma lâmpada! O escuro parecia realmente se importar com ele, pois acabara de ganhar o próprio objeto que o espantava, ainda que isso não fosse superar o medo do escuro completamente.

A obra mostra aos leitores que mesmo os medos mais profundos podem ter dois lados e que os dois precisam ser conhecidos, e isso só é possível através da aproximação estabelecida. Luca não deixou de ter medo, mas sabia que a lâmpada o ajudaria de alguma forma e também que o escuro sempre estaria em algum lugar de sua casa, sempre que precisasse. A relação entre os dois se tornou quase uma amizade, mostrando que a superação do medo não é instantânea, mas um processo de compreensão, que precisa de diálogo e do conhecimento dos dois lados da história. 

Isabela Giacomini é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e vê na literatura uma porta para outros universos e realidades.

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