Danadinha da boneca, por Paulo Ricardo

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“A Emília nasceu de trapos. O meu texto também”.



Tem um bocado de tempo que eu trabalho pr’uma jóia de família, num sítio que é uma belezura. Sou a empregada da casa, mas nem parece! Minha patroa é uma irmã para mim: a melhor das amigas e a mais fiel. Trocamo bastante receita, umas ideia e até uns segredinho de vez em quando. Entre a gente tem uma coisa que tá faltando pra muito neguinho por aí: confiança. Se a gente pudesse confiar em todo mundo, né? Meu São Jorge! Como esse mundão de meu deus ficava melhor pra viver, não é verdade?

Bom, viver mesmo, eu vivo pros netinho da minha patroa (aí, um casalzinho de neto duma lindeza só!). Fico facera quando eles me chamam de tia. Eu me sinto, do fundo do meu coração, que sou tia deles. São os sobrinho dos meu sonho. Vê se pode: desde quando que os meus bolinho-de-chuva são os melhor do mundo? Só pra esses dois tisôro mesmo! O menino parece um homizinho: diz ele que é muito valente e não tem medo de nada – só de picada de marimbondo. Me diz se não dá vontade de levar pra casa um menino desse? Artêro feito o Saci, mas educado e carinhoso igualzinho a avó dele.

A menina também é minha paixão! Um doce de menina que, por muitas vez, ficou me pedindo uma boneca. Mas de onde eu ia tirar tempo e dinheiro prá comprar uma boneca, gente? Eu falo assim, porque sabe como são as menina, né? Elas querem aquelas boneca cheia dos enfeite, bunita, com cheirinho de neném.

Intão, um dia, quando as tarefa de casa tavam bem adiantada, me veio uma ideia: lembrei daquele rostinho lindo da minha princesinha do narizinho arrebitado e passei a mão num vestido vermelho que eu nunca mais usava. Fiz um pontinho aqui, outro ali, cá linha e aguia; forrei uns trapo cuns trapo de pano, um tanto de paia e uns macinho de marcela prá dá um cheirinho. Pontiei os óinho com retroz preto, desenhei a bonequinha, custurei umas tirinha de tecido bem colorido na cabecinha, imitando os cabelinho e tava pronta uma bunequinha. Meia disingonçadinha, toda molinha – tadinha! – mais era uma boneca!

Cunfesso uma coisa: ademorei prá presentiá a minha frôzinha. Pensei cumigo: “ela num vai gostá”. Achei que ela fosse jogá aquele saco de trapo num canto até o mofo e as traça comê tudo. Mas quando vi a menina agarrando, bejando e me agradecendo pela amiguinha nova que li arranjei, me debulhei no choro. Tonta eu, né? Mas o meu São Jorge sabe que a Felicidade dessas criança é a minha felicidade tamém.

E não é que as duas não se largaram mais? Onde tava a boneca, lá tava a menina grudada. Pode ri, porque essa boneca já incardiu tanto que até gruda mesmo!

Óia, eu vou ti falá uma coisa: parece caduquice duma velha preta, disatinada por causa da idade, mais é que umas coisa muito isquisita acontece por essas banda. Ah, é um tal de alma penada desencarnando sabe lá Deus onde. É Saci, Mula-sem-cabeça, Curupira... Nossa Senhora! Já disse uma porção de veis que precisava mandá benzê esse sítio, mas ninguém me esculta.

Acredita se quiser, mas até um doutor com cara de coruja, qué dizê, com cara de Caramujo, apareceu aqui. Melhor dizendo, ele era um caramujo memo, com cara, corpo, jeito concha... ele tinha uns comprimido, as tal das pírula falante. Não é que a bonequinha tomou as pírula e disatô a falar feito gente? Falar e se mexer, diacho! Onde já se viu isso, gente?

Bom, daí por diante nóis começamo a cuidá, tratá e aceitá a danadinha como se fosse uma menina de verdade. Fazê o que, né? Largá a coitadinha por aí, a Deus dará, só por causa dum defeitinho bobo, desse? Nem se a gente quisesse, porque a netinha da patroa ia simbora junto cá boneca. Deus me livre! O que seria de nóis sem aquele narizinho arrebitado, aquela carinha de anjo...? e sem as matraquice da boneca? Esse sítio não ia ter a graça que tem, se a gente não visse e escutasse as molecagem desse capetinha em forma de gente. De gente ou de boneca? Sei lá, só sei que hoje o nosso sítio respira e cheira a trapo veio. Acho que por isso ela é a essência, a essência da nossa história. E da minha também, talvez.

Será possível ser mãe duma boneca? Sogra dum porco? Cruz credo! Esquece o que eu falei, já que esquecer da boneca ninguém vai mesmo. Ela não há de mofá, ao contrário de nóis.
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Produção feita pelo acadêmico Paulo Ricardo. A visão que Tia Nastácia tem de Emília.


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Um comentário:

Anônimo disse...

Gostamos muito do seu texto, Paulo..

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