Fernanda Cunha

Diante a queima de livros de escritores e intelectuais por parte de nazistas em praça pública, Freud, instituidor da psicanálise, em 1933 fez o seguinte comentário ao seu amigo Ernest Jones: “Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros”.

Com esse pensamento, podemos nos questionar como seria uma sociedade em que todos os livros fossem proibidos.

Guy Montag, o anti-herói de Fahrenheit 451, primeiro romance de Ray Bradbury, escrito em plena Guerra Fria, vive em um futuro que seria horrível à qualquer leitor, onde os livros configuram uma ameaça ao sistema, e que não podendo ser lidos, são queimados por aqueles que outrora se dedicavam a extinção de incêndios, os bombeiros.



Neste cenário os bombeiros de Bradbury, entre eles Guy Montag, se tornam agentes da saúde pública, queimam os livros com o objetivo de assegurar que seus conteúdos não tirem o sono das pessoas de bem, cujas inquietações são reprimidas pela presença de grandes televisores, altas doses de comprimidos e absolutamente nenhum tempo ocioso.

O nosso anti-herói ao conhecer Clarisse, uma adolescente que “pensa demais”, começa lentamente a se questionar acerca da realidade imposta à ele, e após o sumiço de Clarisse, inicia uma jornada em que encontra alguns aliados e algumas reflexões em seu caminho para a rebeldia ao sistema.

O futuro anestesiado pintado pelo autor é muito mais próximo do que poderia ser previsto quando a obra foi escrita. Claro, não proibiu-se a leitura, mas aumentou-se em grande escala a quantidade de informações advindas de outros meios, tornando os indivíduos em muitas situações passivos aos livros.

Fernanda Cunha é graduanda de Psicologia pela Univille. Atua como bolsista do Prolij e busca através dos livros que lê as longas caminhadas por dentro de si mesma. 

Gabrielly Pazetto
Nicole Barcelos
*Agradecimentos especiais à Cymara Sell

A literatura de um povo (literalmente) diz muito sobre ele. Ela modifica-se tanto em conteúdo quanto em forma para assumir os contornos da realidade que integra, ou para distorcer e enfrentar as fronteiras que a sociedade vigente impõe. A literatura de um povo também diz muito sobre a sua língua. Como se representa o mundo, como se diz certas coisas - ou não se diz... Por isso, a literatura de um povo é um ótimo meio de conhecê-lo, seja em suas traduções para a nossa própria língua, seja no próprio texto original dos autores. Hoje, propomos um movimento diferente aqui no blog: nos dedicamos a olhar por alguns momentos livros escritos originalmente em inglês em suas versões originais, em tudo que tem para oferecer. Ditos livros infantis em inglês, esses são, na verdade, livros para novos leitores - não importa a idade e o tamanho deles. Que tal se aventurar em novas histórias em um novo idioma?! 


Where the wild things are, de Maurice Sendak – Vestido com seu traje de lobo, o pequeno Max desafia sua mãe e é deixado de castigo em seu quarto, onde as tramas da vida real dão espaço a uma floresta. Suas aventuras farão com que ele descubra where the wild things are. Escrito e ilustrado por Sendak, o livro é um clássico da literatura infantil mundial e ganhador da Medalha Caldecott de 1964, que premia anualmente a obra infantil que mais se destaca em termos de ilustrações.



The heart and the bottle, de Oliver Jeffers – Como proteger o coração das dores do mundo? A protagonista de The heart and the bottle pensou que talvez fosse por bem guarda-lo em uma garrafa, mas nem sempre esse foi o seu lugar. No começo desse sensível livro ilustrado de Oliver Jeffers, conhecemos sua protagonista ainda cheia de curiosidade encantamento com o mundo. Ao se deparar, porém, com um vazio talvez grande demais para compreender, ela mesma se esvazia de seu próprio coração, e, então, o mundo também começa a parecer cada vez menos curioso e encantador. Para recuperar seu coração e, com ele, sua sensibilidade, ela vai precisar de uma “mãozinha” – que talvez esteja onde ela menos espere.



A child of books, de Oliver Jeffers e Sam Winston – A epígrafe que começa esse livro talvez o defina da melhor maneira: “The universe is made of stories, not atoms” (Muriel Rukeyser). Esse livro é feito de histórias. Histórias que conhecemos, algumas mais do que outras, mas que são os tijolos sobre os quais se cimentaram todas as outras histórias que viemos a conhecer. “A child of books” (traduzido talvez não tão felizmente para “A menina dos livros”, sob o selo Pequena Zahar) é literalmente construído sobre essas histórias: seus protagonistas viajam em uma onda de imaginação sobre trechos de As viagens de Gulliver, A família Robinson, As Aventuras de Pinóquio, 20 mil léguas submarinas e tantos outros clássicos “marítimos”; escala uma montanha construída de passagens de Peter Pan; adentra uma caverna escurecida pelos excertos de A ilha do tesouro; e até mesmo se embrenha em uma floresta de contos de fadas. Trata-se de um livro para quem ama livros, para quem ama histórias, e para quem sabe que são elas que traduzem o que há em nós de mais humano: a imaginação.



Cloudy with a chance of meatballs, de Judi e Ron Barrett – O que você faria se, ao invés de chuva, caísse do céu uma refeição inteira? Ou melhor, três: café da manhã, almoço e jantar. Em Cloudy with a chance of meatballs, o avô dos protagonistas, inspirado por um incidente com as panquecas do café, conta a seus netos uma “história de ninar” um tanto peculiar, sobre uma cidadezinha chamada Chewandswallow (chew and swallow), em que as mudanças no tempo traziam diferentes ingredientes para as refeições de seus moradores. Tudo aqui é pitoresco: da cidade, seus moradores e seu tempo, até as ilustrações, detalhadas, mas coloridas em tons atípicos e coloridos que transportam ao leitor para uma estética cinquentista americana. Ao final, o leitor pode se perguntar sobre o quão fictícia essa história realmente pode ser.



The day the crayons quit, de Drew Daywalt e Oliver Jeffers – Duncan só queria colorir, mas quando abriu sua caixa de gizes de cera para fazê-lo, encontrou apenas cartas dizendo "Não aguentamos mais" e "Estamos em greve!". Pois, em "The days the crayons quit", de Drew Daywalt e Oliver Jeffers (traduzido como "A revolta dos gizes de cera" pela Editora Salamandra), os gizes de Duncan desistem de serem mal utilizados pelo seu dono e simplesmente vão embora, deixando nada mais do que recados para o menino. Ora, com o amarelo e o laranja disputando para ser a cor do sol, o rosa relegado a "cor de menina", o bege sendo erroneamente chamado de "marrom-claro" ou de "amarelo-escuro" e o azul sendo utilizado apenas para pintar a água, seria de se imaginar que buscariam empregos melhores em outro lugar, não é mesmo? Nessa divertida história que dá voz e vez aos gizes de cera, o leitor tem a oportunidade de ler todas as suas cartas endereçadas a Duncan, a partir das quais se constrói a narrativa, bem como ao curioso desfecho encontrado para essa pequena e colorida revolução! Indicado para leitores de todos os tamanhos, inclusive os adultos que acham que cada cor só serve para pintar um tipo de coisa!



The Gruffalo, de Julia Donaldson e Alex Scheffler – Quem não conhece o Grúfalo? Com seus dentes afiados, pústulas e aspecto feroz, a criatura coloca medo em todo mundo. Ao menos, é isso que diz o ratinho que protagoniza essa história quando em face do perigo de ser devorado (mais de uma vez) pelos mais diferentes predadores com quem cruza pela floresta. No seu texto original, The Gruffalo é ainda divertidamente rimado, de modo que suas repetições parecem uma música ou um poeminha bem-humorado sobre essa narrativa que parece quase uma mentira! (Eu disse quase, hein?)



The singing bones, de Shaun Tan – Qualquer livro de Shaun Tan poderia estar nessa lista.  O autor australiano, que é conhecido por dar vida às mais fascinantes e exóticas histórias através de sua escrita perspicaz e de seus desenhos quase surreais, nessa obra em particular, porém, ao invés de criar mundos alternativos, revisita e reinterpreta histórias que são, em muitos casos, velhas conhecidas de todos nós. Em The singing bones, reencontramos madrastas malvadas, irmãos traiçoeiros, raposas espertas e princesas em apuros que habitam o mundo dos contos de fadas compilados por Wilhelm e Jacob Grimm, mas de maneira um tanto inesperada. Shaun Tan seleciona e adapta, desses famosos contos, alguns de seus trechos mais famosos ou assombrados e, a partir deles, cria esculturas incríveis (e por vezes assustadoras também). A releitura imagética é o que há de mais precioso nesse livro: algumas das obras podem até revelar outras possibilidades de se olhar essas velhas histórias, como uma Rapunzel que é a sua própria torre, por exemplo. Não há outra palavra para definir The singing bones que não genial – como tudo que Shaun Tan presenteia o mundo, aliás.






Gabrielly Pazetto é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e faz dos livros que lê barcos de viagens inesquecíveis. 

Nicole Barcelos é graduanda em Letras na Univille (Língua Portuguesa e Língua Inglesa). Atua como bolsista do Prolij e vive se perdendo em buracos de coelho.
Nicole Barcelos

Em um lugar qualquer, em um tempo qualquer, vaga pela noite uma diaba. De porta em porta, ela vai indagando quem encontra no caminho a respeito do paradeiro de sua filha, que sumiu sem deixar vestígios e da qual não se lembra direito. De profunda dor e incrível força poética, em A diaba e sua filha, a francesa Marie NDiaye constrói uma narrativa sobre identidade, medo e preconceito em que todos nós poderíamos ser a diaba ou aqueles que lhe fecham suas portas. 

Publicada em 2011 pela finada Cosac Naify, a estreia de NDiaye no gênero talvez ponha em cheque até mesmo o que alguns tenham por literatura infantil. Em uma bela edição que precisa ser urgentemente revisitada por uma nova editora, a autora francesa visita temas que podem ser considerados “difíceis” até mesmo para adultos, mas com uma sutileza e poesia que tornam essas “verdades duras” quase leves e oníricas, inclusive para leitores menos experientes. Com um tom como que de conto de fadas, Marie NDiaye tece uma narrativa, porém, que antes de condenar ou demarcar bons e maus, desfaz as fronteiras entre esses conceitos, sem morais prontas ou certezas a afirmar. 



As ilustrações de Nadja, por sua vez, estabelecem um diálogo encantador com o texto verbal. Sem contornos bem definidos, elas sugerem até mesmo a pouca clareza com que a própria Diaba é vista por seus interlocutores, e as fronteiras borradas que vemos ser dissolvidas. Os tons de azul do projeto gráfico dos desenhos também aprofundam o sentimento de solidão, frio e escuridão sugeridos pela narrativa verbal. Ao amarelo, tímido na capa, ausente nas ilustrações, e abundante no interior das capas, fica também sugerido o papel da luz que parece se acender ao fim dessa triste narrativa. 

A diaba e sua filha faz com que questionemos como nos colocamos ao bater à porta de alguém, e como nos prostramos diante daqueles que batem às nossas portas. Essa é uma história, afinal, sobre a maneira com que nos relacionamos com esses outros, com nossas mães, nossas filhas, e as pobres diabas que muitas vezes desumanizamos ao mero som de seus cascos.



NDIAYE, Marie. A diaba e sua filha. Ilustr.: Nadja. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
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