Nas veredas da fantasia, por Amanda Correa

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“[...]Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.[...]”
Do poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar

Viver num mundo em que os espaços pelos quais se transita são regidos por valores morais que frequentemente vão contra os desejos humanos, é tarefa dolorosa e que exige, muitas vezes, um travar constante de lutas, não só com o mundo, mas também consigo mesmo. Diante disso, os personagens Alice – de Lewis Carrol - e Bastian – de Michel Ende - constroem um mundo novo no qual todos os padrões de comportamento que conheciam até então, desmoronam; as relações tornam-se absurdas e, por vezes, bizarras. A viagem para este mundo fantástico permite uma libertação das correntes sociais que nos prendem e propicia a iniciação de um construir-se partindo de sua própria perspectiva de mundo.



Em Alice esta passagem acontece quando a menina cai na toca do coelho; aquele cair sem fim representa o longo caminho que é preciso trilhar para penetrar o universo do eu. Ao chegar naquele lugar estranho a menina se depara com personagens sem-pé-nem-cabeça – pois agem de modo diferente ao que ela está acostumada – e que farão parte de sua trajetória. Uma das passagens mais interessantes da narrativa de Carrol é o encontro de Alice com a Lagarta Azul. Aquele ser coberto de mistérios que pergunta à menina com voz lânguida, sonolenta: “Quem é você?” ao passo que Alice responde: “Eu... eu mal sei, Sir, neste exato momento... pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então.” A confusão introspectiva de Alice naquele País das Maravilhas se dá em decorrência do confronto do mesmo com a sociedade a qual estava acostumada, em que as crianças era educadas de modo rígido e tudo girava em torno de uma moralidade intrínseca, que não permitia ao homem o pensar livre. Em História sem fim, Bastian também é sufocado pelas relações que se estabelecem em sua vida: o pai, a escola, os amigos – ou a ausência deles – e é através da leitura que o menino irá descobrir o portal para a fantasia. Ambas as narrativas possuem um elemento que dá início as trajetórias dos heróis; em Alice é o coelho que a conduz – pela curiosidade – até a toca, para Bastian é um livro – especial, diferente dos outros. 


O sentimento primeiro, que leva nossos heróis - Bastian e Alice - as suas respectivas viagens, é o de fuga. E são nestes momentos, que o homem conduz seu olhar para dentro de si tentando encontrar saídas possíveis. No caso do herói Bastian, a dor da perda da mãe torna impossível a convivência com o pai, que evita dialogar a qualquer custo – talvez para não parecer fraco diante do filho, já que socialmente os homens são condenados por exprimir tais sentimentos. E a escola que deveria ser o espaço-base neste momento de dor, só faz aumentar o abismo entre o garoto e o pai, enviando reclamações de seu mal comportamento e notas baixas. Diferente de Alice, o fortalecimento de Bastian vai acontecendo através do processo de leitura, no qual espelha sua realidade a de Atreyu. Já Alice vive em uma atmosfera de sonho, na qual inverte o que é real, possibilitando reconstruir suas ideias e pensamentos. A dor de Alice é por todo um espaço de repressão, usurpador de identidades e construtor de uma moral embasada em pilares ilusórios.


O fio que costura as duas narrativas é o desejo de redimensionar a vida, criar possibilidades, ultrapassar o lugar comum. A tomada de consciência de Alice faz com que ela se permita dar este passo sozinha e enxergue as coisas de sempre, com um olhar mais aguçado e crítico. Enquanto Bastian assume com força total o seu papel de leitor, incorporando a narrativa, se entrelaçando a ela. E este é o cerne da literatura: criar sujeitos que saibam ler o mundo em sua complexidade, indo além das relações superficiais nas quais estamos inseridos.


Seja aumentando ou diminuindo de tamanho, seja lutando contra um Nada que está a tomar conta das mentes, a força adquirida pelos personagens Alice e Bastian representa o início de um novo ciclo; todas as dores e sofrimentos fazem parte destas veredas que vamos desbravando a cada dia. É uma luta constante contra todo um sistema que limita o sonhar e o querer ser. E a única vereda capaz de nos despertar deste estado de inércia e anestesia social é a da fantasia.


Referências bibliográficas


CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.


A história sem fim. Direção: Wolfgang Petersen. Intérpretes: Barret Oliver; Gerald McRaney; Drum Garrett; Darryl Cooksey; Nicholas Gilbert; Thomas Hill; Deep Roy; Tilo Prückner; Moses Gunn; Noah Hathaway; Alan Oppenheimer; Sydney Bromley; Patricia Hayes; tami Stronach. EUA, 1984. 1 filme (94 min).


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