A infância sem clichês - Entrevista com Peter Hunt

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O inglês Peter Hunt, especialista em literatura infantil, critica o discurso politicamente correto no gênero e defende que os livros deixem as crianças pensar por si próprias

por Edgard Murano (aqui)

Apesar da popularidade, a literatura infantil continua alvo de preconceitos dos que a julgam uma forma literária inferior, simplificada. É contra essa visão reducionista que se opõe o crítico e escritor britânico Peter Hunt, cuja obra publicada no Brasil - Crítica, Teoria e Literatura Infantil (Cosac Naify, 2010) - oferece um debate aprofundado sobre o gênero, para além do senso comum e dos preconceitos literários. 

Professor de inglês na British University e autor de A Step off the Path (1985) - classificado pela imprensa britânica como "o primeiro livro infantil pós-modernista" -, Hunt já foi traduzido para línguas como árabe, chinês, grego, japonês e persa. Dos prêmios que recebeu por serviços prestados à literatura para crianças, destaque para o Brothers Grimm Award, concedido em 2003 pelo Institute for Children's Literature de Osaka, no Japão. 


Hunt é contra o discurso politicamente correto, que assola a produção literária infantil, e valoriza obras "subversivas" para crianças, uma vez que a maioria dos livros infantis escritos hoje tenta "direcionar o pensamento delas", sem deixar que pensem por si mesmas. Além disso, dirige duras críticas ao que ele chama de "comoditização" dessa literatura, com a produção de livros em série visando apenas o lucro, e avalia o impacto das novas tecnologias na narrativa infantil. 



Em entrevista por e-mail à revista Língua, o professor britânico admite não conhecer autores brasileiros de livros infantis, exceção feita a Monteiro Lobato, o que ele atribui à baixa permeabilidade do mercado editorial inglês a livros estrangeiros. Mas suas visões e opiniões, embora embebidas pela realidade inglesa, são perfeitamente aplicáveis a outras literaturas, como a brasileira.



Você escreveu que a literatura infantil não é inferior. Por que a crítica nutre preconceitos assim?

Há três razões. Primeiro, os críticos não pensam com muita clareza sobre livros infantis, e creem que, pelo fato de os textos serem escritos para crianças, precisam ser simples. Isso mostra uma falta de entendimento sobre como a língua funciona - toda língua é complexa - e ignora o fato de que os livros infantis são escritos por adultos, não podendo existir "fora" da ideologia. Em segundo lugar, alguns adultos têm uma relação bastante ruim com a própria infância e temem que possam ser considerados "pueris" se levarem seus livros infantis a sério. Mas, como C. S. Lewis disse, um sinal de desenvolvimento truncado é o medo de ser pueril! E em terceiro (o pior de todos) é que uma porção de críticos pensa que alguns livros são melhores ou mais importantes do que outros: eles não conseguem definir POR QUE esses livros são melhores, mas como eles são as pessoas que decidem o que é "bom", não admitem que certos livros (como os infantis, por exemplo) tenham valor e sejam importantes (e "bons") de uma forma que eles não compreendem ou não querem compreender!



Qual a diferença entre a literatura infantil e a "adulta", para além do público-alvo?

Muito pouco, no sentido de que você pode encontrar exemplos em quase todos os gêneros e tipos de livros - longo/curto, complexo/simples, moral/amoral, ilustrado/não ilustrado, inteligente/estúpido, popular/intelectual - que são voltados para crianças ou adultos. Contudo, os livros infantis usam mais imagens (um meio bastante complexo) do que os livros adultos, e há sempre uma luta pelo poder entre o escritor adulto e a criança leitora. De maneira geral, os livros infantis sentem que deveriam ter finais felizes, positivos ou otimistas, e frequentemente fazem da moral algo positivo. Mas além disso, a maior diferença é que todo livro infantil contém uma ideia do que vem a ser uma criança - uma criança real, ideal ou imaginada... O público é um fator vital. 



Qual é o maior problema na literatura infantil mundial?

A predominância das pessoas do marketing e do dinheiro. No Reino Unido, mais de 90% dos livros infantis são "comissionados", isto é, os publishers decidem o que deve ser escrito e então alugam autores para escrever essas obras. Essa é a razão pela qual todo publisher tem os mesmos tipos de livros em suas listas. Há milhares de "clones", imitações de outros livros tentando fazer dinheiro em cima da mesma fórmula. Cada vez menos livros são mantidos no catálogo. Um livro deve lucrar em seu primeiro ano, e então ser substituído por um novo, daí até bons autores serem forçados a escrever mais livros do que deveriam. Novos autores também têm poucas chances de ver seus livros publicados. Uma coisa boa é que há mais publishers menores, assim alguns livros pouco usuais e individuais estão sendo publicados. E por haver tantos livros, há uma porção de boas obras por aí.  



Conhece a literatura infantil brasileira?

Tenho vergonha de dizer que menos de 2% dos livros infantis publicados na Inglaterra são traduções, e não conheço escritores brasileiros, embora devam existir vários. Nem Lobato é traduzido, até onde eu saiba. 



Como avalia a literatura infantil hoje?

Apesar do que eu disse antes sobre a questão do marketing e do dinheiro, tenho a impressão de que, ao redor do mundo, a literatura para crianças está prosperando no que diz respeito às ilustrações, livros de gravuras e textos gráficos. Basta dar uma olhada para o catálogo infanto-juvenil da Cosac Naify, quantos talentos! Apesar das pressões comerciais, há muitos trabalhos bons sendo feitos. A maior parte deles está se deparando com os desafios das novas mídias, e há um monte de excelentes trabalhos experimentais. O elemento mais fraco é provavelmente o romance, mas talvez seja porque a narrativa ou contação de histórias está mudando com os novos meios.   



As crianças interagem com os livros da mesma maneira que as do passado?

Aqueles que leem livros interagem da mesma maneira. Na Inglaterra, estatísticas sugerem que a porcentagem de crianças que são leitoras de livros não mudou nos últimos 20 anos. Todavia, pela razão de os livros agora competirem com outros meios, pode ser que as crianças não tenham tanta habilidade com as palavras ou em usar a imaginação sem estímulo visual. Além disso, no Reino Unido e nos EUA pais gastam menos tempo lendo para os seus filhos e interagindo com eles, de modo que as crianças não têm o hábito da leitura nem a fascinação pela palavra que se costumava ter. Você pode achar que isso é ruim, mas algumas pessoas argumentam que as crianças têm uma dieta de histórias muito mais rica do que tinham antes - e o livro é só uma parte dela. 



Há tendência de os infantis apresentarem recursos não verbais, como texturas, tecidos, dobraduras etc. 

O que acha disso?

Vejo isso como um desdobramento muito saudável, possível graças à tecnologia. Na minha opinião, as crianças deveriam interagir com os livros e a arte de todas as formas possíveis - tocando, sentindo - até mesmo provando - e lendo também. 



Você acha importante que os livros infantis sejam politicamente corretos?

Não. Eu pessoalmente acho o contrário, pois acredito que as pessoas deveriam abrir suas mentes e pensar por elas mesmas. Porém, entendo que muitas pessoas (o que tem sido verdade) vejam os livros infantis como uma oportunidade de direcionar o pensamento das crianças e mostrá-los do jeito que os adultos querem. E tem sido verdadeiro (como resultado disso) que os livros infantis têm sido mais "politicamente corretos" do que os livros para o público adulto. Não acho que isso irá mudar, mas sempre existirão livros "não politicamente corretos", e há uma longa tradição de livros infantis subversivos. 



Como os pais podem reconhecer um bom livro para os filhos?

Procurando com afinco! Ninguém conhece melhor os filhos do que os próprios pais, então ninguém pode aconselhá-los. Eles devem examinar cada livro com seriedade e perguntar coisas como "esta obra partilha dos valores que eu desejo passar aos meus filhos?". "Meus filhos reagirão de um jeito que eu goste?". Isto é, será que eles vão dar gargalhadas ou ficarão com medo - e se vão ficar com medo, será que eu quero que eles fiquem assim? "Este livro está funcionando para a criança?". Só os pais podem julgar o que eles querem para os seus filhos. Leva tempo, mas os pais não deveriam deixar essa tarefa na mão de outras pessoas. Críticos podem indicar a direção certa (se escolherem seus críticos com cuidado), mas os livros escolhidos pelos pais têm de combinar com seus filhos - o que demanda cuidado e um bocado de amor - e, o mais importante, os pais têm de reconhecer a importância da literatura infantil. E esta questão sugere que não existe essa coisa de um "bom livro", mas um livro que seja bom para determinada pessoa.



De que forma os infantis contribuem para tornar a infância uma commodity?

Se a literatura infantil é parte do processo de vender produtos, de fazer cada criança a mesma, e talvez até pior, de fazer cada história a mesma, então sim, a literatura infantil pode ser considerada um fator maior de "comoditização" da infância. Mas alguns dos melhores livros da literatura para crianças foram escritos por rebeldes, e ainda acho que livros infantis, por serem subversivos e rebeldes, podem ajudar a libertar a infância, isto é, dar às crianças a chance de se tornarem adultos que pensam de forma livre. 



Muitos produtos culturais visam falar para pais e filhos. Não se corre o risco de infantilizar a narrativa como um todo?

Esta é uma pergunta estranha para mim - porque em inglês, "infantilizing" significa "simplicar de uma forma ruim" - com a implicação de que infantil é uma coisa ruim. Eu argumentaria o contrário: livros e filmes que fingem ser para crianças, tendo os pais como público secundário, estão de fato degradando a infância e insultando as crianças. Livros e filmes voltados para esses dois públicos (como Shrek) são geralmente voltados para adultos (que têm o dinheiro) e as crianças são secundárias. Outra resposta seria "o que há de errado com a infantilização?". Melhor do que a "adultização"!


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