Procura-se Lobo!

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por Cleber Fabiano da Silva
                                                                                                          __ In bocca al lupo!
                                                                                                                                             __ E muoia il lupo![1]

            Há séculos amedrontando crianças e adultos de todo o mundo, o lobo tornou-se o símbolo da maldade. Orgulhoso de sua fama de mau possui um sem número de aparições em contos da tradição oral, histórias infantis, músicas, filmes, desenhos animados, enfim, um clássico vilão digno de assustar o mais corajoso dos heróis.
            Com sólida tradição, no entanto, não conseguiu livrar-se nem passar despercebido dos requintados procedimentos pós-modernos de descontrução e atualização dos personagens. Enganado, preso, humilhado e até mesmo convertido em lobo bom, o ouvinte-leitor-espectador contemporâneo acompanha essas mudanças na alcatéia globalizada que se tornou o mundo dos lobos.
            O melhor retrato desses novos tempos pode ser encontrado no livro Procura-se Lobo que conta a história de Manuel que era Lobo mas não era lobo. Era gente. Da fera, tinha apenas o sobrenome. Estava procurando emprego e leu no anúncio que precisavam de lobos. Candidatou-se, afinal, duvidava que esses selvagens animais lessem jornais. Apesar de não ser bem o que procuravam, ele escrevia muito bem, gostava de ler e conhecia muitas histórias, então foi contratado para respondedor de cartas de lobos.
            Com esse original argumento, a escritora Ana Maria Machado – vencedora do Prêmio Hans Christian Andersen e imortal da Academia Brasileira de Letras – reafirma seu talento congregando literariedade e imaginário, ingredientes indispensáveis da boa prosa. Como toda obra de arte, possibilita vários níveis de leitura, uma vez que deixa fissuras e espaços abertos para, a cada nova página, o leitor apropriar-se das referências que consegue conhecer (ou reconhecer).
            E de todos os continentes chegavam inusitadas missivas oferecendo a Manuel Lobo os seus serviços. Um fabuloso exemplo para a prática social da leitura e da escrita, o tão apreciado Letramento dos meios acadêmicos. Como ele conhecia uma porção de histórias, ficou com o futuro garantido, pois não havia quem fosse capaz de enganar um leitor como ele. Com astúcia e paciência, reconhecia os candidatos e escrevia a devolutiva.
            Alguns lobos perversos foram dispensados, outros encaminhados para determinados cargos ou funções de acordo com suas pretensões e currículos. Manuel não aceitou para nenhuma vaga os vilões das seguintes histórias: Chapeuzinho Vermelho, Os Três Porquinhos, Os Sete Cabritinhos ou das fábulas de Esopo e La Fontaine.
            Vale dizer que eles tentaram de todas as formas e quase confundiram nosso agente, que era perito em decodificar mesmo as letras mais ilegíveis. Esse fato curioso ocorreu ao ler a assinatura Lobão em um breve recado. Ainda pensou que podia ser um cantor de rock, escrita com pressa, enquanto o músico tocava guitarra ou bateria, sem nem firmar a mão. Um lobo brasileiro?
            Interessante notar que, embora não seja parte constitutiva do folclore local, a autora utiliza episódios para criar uma atmosfera verde-amarela. Chega a citar o lobo-guará e outro que teria virado bolo por causa de uma Chapeuzinho Amarelo. Sem esquecer, é claro, do lobisomem pedindo emprego na agência.
            Entre tantas aparições inusitadas, está a presença de uma loba. Não dava para saber se era personagem de livro ou inventada. Muita gente garante que era de verdade. Trata-se da Loba Romana que segundo a lenda teria criado Rômulo e Remo, este último fundador de Roma. Da ilustre senhora uma bela lição: Vocês estão precisando recorrer aos lobos, porque com certeza sabem que nós nunca abandonamos nossos filhotes. Manuel decidiu que ela podia ser modelo para estátuas e moedas. Se ela pudesse ensinar alguma coisa aos homens...
            Virtude dessa natureza também apareceu num chefe de família exemplar. Um bicho que não era mau nem comia ninguém. Ao contrário, tinha qualidades de um bom pai, ajudou a criar filhos de outros, possuía boas referências e podia provar que sua pedagogia deu bons resultados. Bastava consultar o urso Balu, a pantera Baguira ou o menino Mogli.
            Essas diferenças possibilitam um ponto-de-vista bastante diferenciado do mesmo personagem e, principalmente, ampliam os horizontes dos leitores ao levar em conta fatores extralingüísticos, como a historicidade, o contexto de produção e outras variáveis presentes no ato da leitura. Bem distante da ficção, por exemplo, existe o fato de os lobos viverem agrupados em bandos, serem carnívoros da família dos canídeos e correrem o risco de extinção.
            A escrita funciona bem com suas citações, paráfrases e intertextos. Está sintonizada com o projeto gráfico de Sylvain Barré e as brilhantes ilustrações de Laurent Cardon que complementam de modo inteligente e irreverente a obra. Na segunda e terceira capas o livro traz de modo sucinto informações e referências sobre as histórias utilizadas, servindo de estímulo para o leitor mais crítico.
            De todos os modos, para além de qualquer revisitamento ou procedimento pós-moderno sempre restará o lobo. A figura masculina e sedutora que come a Chapeuzinho, destrói a casa de algum porquinho e aparece em contos e fábulas de todos os tempos. Um lobo mítico, facilitador e promotor de ritos iniciáticos, possuidor de selvagerias e atitudes animalescas que não morre nunca, porque também restará o homem: o lobo do lobo do homem.

REFERÊNCIAS:

MACHADO, Ana Maria. Procura-se Lobo. São Paulo: Ática, 2005.


[1] __ Para a boca do lobo! __ Morte ao lobo! – dizeres de boa sorte usados na Itália. referência


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