Apaixonar-se é adiar a própria morte

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De algumas histórias não se pode esconder o final ao falar sobre elas. Algumas histórias são feitas para serem contadas, entregadas mesmo aos leitores-ouvintes, sem o risco de afastá-los delas. Pelo contrário. Cada leitor constrói sentidos muito próprios junto ao que lê.
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Conhecia uma só história em que a morte era personagem. Uma história maravilhosa, lindíssima, encantadora. A morte do livro “As intermitências da morte”, do José Saramago. A morte que resolve não matar mais ninguém, e que, com isso, provoca um caos na humanidade. A morte que sente o que é a vida. A morte que se apaixona.
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E agora conheci duas outras histórias nas quais a morte se personaliza. As duas de um escritor alemão, o Wolf Erlbruch, ganhador do prêmio Hans Christian Andersen, em 2006, pelo conjunto da obra.
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Ele é autor de um livro lindíssimo, chamado “A grande questão”, no qual a grande questão que dá nome ao livro é a do por que viemos ao mundo. E ele apresenta respostas das mais finas para isso. Mas não são respostas dele, não. Ele apresenta os dizeres de diversos seres importantes sobre o porquê de estarmos aqui no mundo, como por exemplo: para o passarinho, a grande questão do por que viemos ao mundo é para cantarmos a nossa própria canção. Algo como construirmos nossa própria história. Para o marinheiro, é para navegarmos por todos os mares. Para o jardineiro, viemos ao mundo para aprendermos a ser pacientes. O pato diz não fazer a menor ideia do por que viemos ao mundo. Para a pedra, estamos aqui para estar aqui, somente. E para a morte, estamos aqui “para amar a vida”.
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E a morte que nos diz isso em “A grande questão” reaparece em “O pato, a morte e tulipa”, o outro livro do Wolf Erlbruch. Reaparece para nós, leitores, e aparece, pela primeira vez, para o pato. Aquele mesmo pato do outro livro, sim, que não fazia a menor ideia do por que estava no mundo. E, como a vida mais das vezes toma proporções que nos fogem ao alcance, é este pato quem ensinará à morte o que é, ou pode ser, amar a vida.
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A história da morte, do pato e da tulipa, ou do pato, da morte e da tulipa, como queiram, começa com um pato inquieto, incomodado com algo há algum tempo, e que de repente se depara com a morte ao seu lado. A morte que “tinha um sorriso amigo”, que até era simpática, bem simpática mesmo, “quando não se levava em conta quem ela era”.
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A morte que passa a conviver com o pato por alguns dias. Que passa a sentir o que é, ou pode ser, viver e amar a vida. A morte que entra no lago com o pato, que inverte os papéis com o pato, passando a se sentir ela incomodada, e não ele:
“ – Está com frio? – perguntou o pato. – Posso te esquentar?
Ninguém jamais havia feito a ela uma proposta parecida”.
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E nesse ritmo a morte segue aprendendo coisas boas da vida com o pato. Coisas que não servem pra nada, não. Sentindo justamente que as melhores coisas da vida não devem servir para nada. Como, por exemplo, a sentar-se lado a lado com alguém sem a necessidade de se falar algo. Como, por exemplo, a subir em árvores:
“Às vezes, a morte podia ler pensamentos.
- Quando você estiver morto, o lago também não vai estar mais lá – pelo menos não para você.
- Tem certeza? – perguntou o pato espantado.
- Certeza absoluta – respondeu a morte.
- Menos mal. Então eu não preciso ficar triste por ele quando...
- Quando você estiver morto – disse a morte.
Era fácil para ela falar sobre a morte.
- Vamos descer – pediu o pato depois de alguns instantes – a gente tem cada pensamento estranho em cima das árvores...”.
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Até que um dia o pato sente frio. Um frio incômodo. E pede à morte se ela não quer esquentá-lo um pouco. E a morte fica a olhar para o pato. Esquentando-o com o olhar. Enquanto ele descansa.
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Um descanso que se torna eterno. E a morte, então, carrega o pato no colo até o grande rio. Coloca-o lá, com cuidado, deitado para cima:
“E continuou olhando o fluxo do rio por um bom tempo.
Quando perdeu o pato de vista, por pouco a morte não ficou triste.
Mas assim era a vida”.
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A última linha do breve texto da contra-capa do livro pergunta: “E onde a tulipa entra nesta história?”.
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Pois a tulipa está na mão da morte desde o momento em que ela aparece para o pato. E é ela que a morte coloca sob o peito do pato no momento em que o ajeita nas águas do rio. Uma cena encantadora.

A tulipa amarela representa o amor impossível, ou a luz do sol. A tulipa roxa, a quietude e a paz. Mas é a tulipa vermelha que se faz presente na história. E é a tulipa que simboliza o amor verdadeiro. O amor pela vida, citado pela morte de “A grande questão”. O amor que humaniza a morte nas intermitências escritas pelo Saramago. E o amor que encanta ao aproximar a morte do pato, ao novamente humanizá-la. Ao desnorteá-la em seus afazeres. Ao deixá-la apaixonada. E ao torná-la apaixonante para o leitor.
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Ítalo.


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Um comentário:

Eduardo Silveira disse...

Adorei, Ítalo!

estou com uma vontade de ler os livros...:P Esse vai para o listão! hehe
Falar de assuntos (assuntões...) como amor, morte, angústia exige muita sensibilidade do autor. Sensível como é Saramago ou como o Erlbruch (primeira vez que vejo seu nome).
E a sua resenha, também, está muito bonita. Sensível, à altura dos autores.

abraço!

=D

P.S: bonito título. taí, é verdade!
Vamos nos apaixonar, então!!!

P.S (2): cuidado com a ambiguidade, hein, Ítalo!
^^

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