Fraturas emocionais: marcas leitoras

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Ítalo Puccini*

O ato de ler pressupõe uma leitura não somente de textos, de palavras escritas. Não somente de imagens ou de sons. Mas sim uma leitura de nós mesmos e daqueles com quem convivemos. Ler transcende a força que a própria palavra carrega em si. Ler é criar um sentido próprio a si mesmo e ao mundo ao redor de si. É encontrar-se em um eu ainda desconhecido. Ler é, também e principalmente, saber ler a si mesmo e ao outro com o qual se estabelece uma relação de viver.
Cada leitura tem uma história própria. Cada texto tem também sua história própria. Assim como cada leitor constrói sua história de leitura. É Lajolo quem afirma que “Cada leitor, na individualidade de sua vida, vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando”.
É por essas veredas de conhecimento que a leitura não pode ser vista como uma atividade inocente. Para o crítico literário Alberto Manguel, por exemplo, “Toda história é uma interpretação de histórias: nenhuma leitura é inocente”. Não há como ler algo sem relacionar, mesmo que inconscientemente, a outro algo, ou já lido, ou já ouvido, ou já presenciado. Uma leitura leva à outra. Uma leitura não só de livros, mas também uma leitura de vida. Viver é relacionar-se. Vivemos nos lendo a aos outros também. Influenciamos e somos influenciados. Nossas histórias, lidas e vividas, embrenham-se em nossa formação de sujeitos e cidadãos que somos.
Diante disso, três livros catalogados como infantojuvenis, publicados entre os anos de 2008 e 2010, apresentam ao leitor uma mesma temática (a guerra), abordada por entre caminhos que lá na frente talvez se encontrem (diferentes personagens e seus sentires sobre e a partir da vivência – presente ou a distância – de uma guerra). Além de dois livros juvenis bastante consagrados desde quando publicados (inclusive filmados para o cinema) como “O diário de Anne Frank” e “O menino do pijama listrado”, que exploram essa contextualização do universo adolescente em meio a uma guerra, o leitor tem a sua disposição outros três títulos que seguem tal temática e uma oportunidade de estreitar relações entre os livros em si e sua própria bagagem leitora.


         O inimigo

Existe alguém
Que está contando com você
Pra lutar em seu lugar
Já que nessa guerra
Não é ele quem vai morrer...

E quando longe de casa
Ferido e com frio
O inimigo você espera
Ele estará com outros velhos
Inventando
Novos jogos de guerra.

(Canção do Senhor da Guerra, Legião Urbana)

            Publicado em 2008 pela editora Cosac Naify, com tradução de Paulo Neves, e ilustrações de Serge Bloch, o livro do escritor suíço Davide Coli se apresenta como um livro que, para ser lido, precisa ser tocado e explorado em todas suas dobras e dimensões. A começar pelas imagens presentes na capa e na quarta capa, com detalhes sutis (com o perdão do pleonasmo) que podem passar despercebidos pelo leitor mais ávido pelo texto escrito. Sem contar, então, a primeira e a última folha do livro, que se tornam uma só com suas respectivas orelhas. As imagens de vários bonequinhos-soldados, repetidos, causa um efeito visual que envolve o leitor antes mesmo dele entrar na história (e fica uma surpresa, para quem ainda não leu este livro, na orelha da quarta capa).
            O texto escrito em si conta uma história narrada em primeira pessoa. Uma história com dois personagens centrais. Quem narra? Não se sabe. Fica a critério do leitor adivinhar ou escolher quem está contando para ele a história de como um soldado aprende a guerrear. Através de um manual de instruções. Um simples manual: “O manual diz tudo sobre o inimigo: devemos matá-lo antes que ele nos mate, porque é cruel e impiedoso. Se nos matar, ele dizimará nossas famílias. E nem assim ficará satisfeito. Matará também os cachorros, depois todos os animais, queimará os bosques, envenenará a água. O inimigo não é um ser humano”.
            O leitor se depara, então, com dois soldados que não sabem o que estão fazendo em seus respectivos buracos. Não sabem o que estão protegendo, nem de quem. Apenas sabem que há um inimigo. E que este inimigo precisa ser morto. Para que uma guerra acabe, é preciso que uma das duas forças seja derrotada. Assim diz o manual. E o que mais querem os dois soldados é o término da guerra. Para isso, então, eles buscam um meio de alcançar o esconderijo do outro.
            É o momento em que os dois soldados percebem que o inimigo presente no manual deles podem ser eles mesmos: “Eu sou um homem, este manual só diz mentiras. Não fui eu que comecei esta guerra! E não vou matar os animais nem queimar os bosques nem envenenar a água, se ele se render!”.
            “O inimigo” se apresenta como um livro. Mas pode também ser um espelho. Um espelho entre os dois personagens, porque o que um diz ou pensa, pode também ser dito ou pensado pelo outro, ou um espelho para o próprio leitor, uma vez que entrar num livro significa se ver dentro e diante dele, encontrar a si mesmo por ali, deparar-se com um consigo mesmo antes desconhecido.

         O menino, a guerra e a bola

Que belíssimas cenas
De destruição
Não teremos mais problemas
Com a superpopulação...

Veja que uniforme lindo
Fizemos prá você
Lembre-se sempre
Que Deus está
Do lado de quem vai vencer.

(Canção do Senhor da Guerra, Legião Urbana)

            Três palavras como título, excetuando-se os artigos e a conjunção aditiva “e”. Três palavras que apresentam ao leitor, desde o início, o que ele poderá encontrar no livro.  É um título que inquieta. Que segura o leitor. Que não o deixa abrir o livro e folhear as páginas. Ainda não. Antes é preciso pensar que relações se podem estabelecer entre menino, guerra e bola.
            O livro do escritor francês Jean-Batpiste Cabaud, com ilustrações de Fred Bernard, tradução de Monica Stahel, publicado no Brasil em 2009 pela Editora Martins Fontes, encanta desde a capa, ao mesmo tempo em que inquieta. Seduz o leitor para o seu começo. E seduz ainda mais por apresentar na grafia do texto do livro todas as letras “o” em cor vermelha. Fica o leitor, novamente, com a dúvida do porquê é assim. E quando um livro coloca várias pulgas atrás da orelha do leitor é porque ele já cumpriu com seu propósito.
            Ao conhecer a história, então, o leitor entra em uma área disputada por dois grupos rivais. Uma área fria no inverno europeu. Uma área cinza, como toda área de guerra parece ser. Uma área cheia de buracos e de esconderijos, como aqueles em que ficam os dois personagens da história anterior: “Os soldados esperavam ordens absurdas, deitados na lama úmida das trincheiras, tremendo de medo e encharcados. As pessoas que não tinham fugido da zona dos combates se trancavam em casa, apavoradas, sem saber o que fazer para não ouvir os tiros de canhão ininterruptos e para continuar acreditando que sobreviveriam a tudo aquilo”.
            “Mas em todas as guerras há imprevistos”, diz o texto mais para a frente. E eis que o imprevisto surge rolando por um campo vasto. Descendo uma região montanhosa, lá vinha aquela esfera vermelha, “um tesouro frágil e precioso (...). Era um tesouro de couro velho e todo rachado, de tanto que já tinha sido usado”. Era a bola do menino.
            “Então os soldados desviaram os olhos, porque de repente uma voz na colina falou mais alto do que a voz louca. Era uma voz aflita que gritava: ‘Não! Volte! Volte aqui!’ E a voz corria atrás de um menino que corria atrás de uma bola que corria pela colina rumo aos campos de batalha”.
            E o leitor corre atrás da voz que corre atrás do menino que corre atrás da bola. O leitor corre para não deixar sozinho naquele espaço o menino. Porque o leitor, a partir do momento em que lê um texto, dá a este a vida que lhe faltava. A partir disso, então, é preciso cuidar dele e das vidas que dele surgem. Porque toda leitura precisa ser cuidadosa.

         Um fio de esperança

Mais uma guerra sem razão
Já são tantas as crianças
Com armas na mão
Mas explicam novamente
Que a guerra gera empregos
Aumenta a produção...

Uma guerra sempre avança
A tecnologia
Mesmo sendo guerra santa
Quente, morna ou fria
Prá que exportar comida?
Se as armas dão mais lucros
Na exportação.

(Canção do Senhor da Guerra, Legião Urbana)

            A produção mais recente das três abordadas neste ensaio é de autoria de Marjolijn Hof, escritora holandesa. Seu livro, aqui no Brasil traduzido com o título de “Um fio de esperança”, publicado em 2010 também pela Editora Martins Fontes, coloca diante do leitor a história de Lili, uma menina que sente na pele a agonia da espera por alguém que partiu para guerrear, com ou sem manual à disposição.
            Mesmo tendo aprendido com seu pai que acidentes acontecem em qualquer lugar, Lili narra o livro deixando claro que entre a teoria ensinada pelo pai e a prática de senti-lo longe, sem notícias frequentes, e exposto a um ambiente de guerra, fica um fio de esperança de que acidente nenhum aconteça, ainda mais devido à atividade que seu pai realizava por lá: “Meu pai ia para a guerra. A bagagem já estava pronta, só faltava dizer tchau. Ele ia bastante para a guerra. Pelo menos uma vez por ano. Em geral, as pessoas fogem da guerra como o diabo foge da cruz, mas meu pai ia lá para trabalhar. Ele é médico humanitário: no campo de batalha, precisam de gente como ele. Ele gostava muito de ser útil”.
            É assim que começa o livro. Com esta apresentação, escrita por Lili, de seu pai. E a narrativa segue em primeira pessoa, com a garotinha contando ao leitor que seu pai vive indo para a guerra, e que sempre volta. Mas dessa vez ela parece sentir que este ir e voltar não será tão simples. E tenta de todas as formas convencer seu pai disso: “(...) preferia que ele ficasse conosco. E as balas perdidas, então? São mais perigosas que os soldados, porque só fazem o que lhes dá na telha. Vão para onde bem entendem e ninguém dá bola para elas.
            - Balas perdidas não existem – disse papai.
            - Existem sim!
            - Não se preocupe, eu nunca vi nenhuma!
            - O dia em que você vir uma, será tarde demais – respondi”.
            E as conversas assim diretas continuam. Agora entre Lili e sua mãe. E é a partir de uma dessas conversas que a menina decide querer ter um ratinho, além de Mona, a cachorrinha da casa. Isto porque, pensa Lili, a probabilidade de ter um pai morto, um cachorro morto, e um rato morto eram muito menores do que ter somente o pai morto. Assim, ela evitava que acontecesse de ficar sem pai, porque as chances se tornariam muito menores.
            É com essa sensibilidade que o leitor se depara no decorrer desta história. É um deparar-se aliado a uma entrega. Um não querer mais desgrudar de Lili e de seus pensares e de suas ações tão inocentes ao mesmo tempo que tão sensíveis diante de um mundo que lhe apresenta o oposto do que ela pratica.


         Histórias que nos contam

Voltando ao ensaísta Alberto Manguel, em um dos seus livros mais recentes, “A cidade das palavras” (Companhia das letras, 2008), ele se pergunta se as histórias são capazes de mudar quem somos e o mundo em que vivemos. O que dizer disso, leitor? O que responder depois de ler e de conhecer histórias como as relatadas neste ensaio?
Como leitor que sou, com as marcas leitoras que carrego em mim, só posso dizer que sim, que as histórias são capazes de mudar quem somos. E acredito nisto porque senti – e continuo sentindo – o quanto as histórias que já li mudaram meu eu, mudaram minha forma de pensar, sentir, e de agir no mundo. E o próprio Manguel apresenta uma resposta à pergunta que faz: “As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos – uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia”.
            Talvez assim nos aconteça, de fato, com quem se torna aquele “último leitor” descrito por Piglia em “O último leitor” (Companhia das letras, 2006). O leitor “extremo, sempre apaixonado e compulsivo; viciado, que não consegue deixar de ler, insone, sempre desperto”, para quem a leitura é uma forma de vida, para quem a literatura dá um nome e uma história, “retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica”. Somos, estes sujeitos-leitores, os últimos leitores, aqueles em busca do sentido experiência perdida, que dão à literatura uma utilidade que ela não comporta. Que dão ao livro o que não se cabe nele. Que dão à vida uma história que não é dela só dela. Que dão à história uma nova vida.

Referências Bibliográficas

CABAUD, Jean-Baptiste. O menino, a guerra e a bola. Trad. Monica Stahel. Ilustrações: Fred Bernard. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

CALI, Davide. O inimigo. Trad. Paulo Neves. Ilustrações: Serge Bloch. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

HOF, Marjolijn. Um fio de esperança. Trad. do Holandês para o Francês por Emmanuêle Sandron; Trad. do Francês por Andréa Stahel Monteiro da Silva. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1999.

MANGUEL, Alberto. A cidade das palavras: as histórias que contamos para saber quem somos. São Paulo: Companhia das letras, 2008.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

PIGLIA, Ricardo. O último leitor. trad. Heloisa Jahn. – São Paulo: Companhia das letras, 2006.

RUSSO, Renato. Canção do Senhor da Guerra. In: URBANA, Legião. Música para acampamento (Volume 1). EMI Odeon, 1992. Faixa 3.

* Professor de Língua Portuguesa e Literatura, leitor e escritor. Integrante do Prolij (Programa Institucional de Literatura Infantil Juvenil da Univille). Escreve no www.um-sentir.blogspot.com


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