Literatura infantil em debate: uma estrevista com Julia Moritz Schwarcz

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entrevista retirada daqui.


Tantas vezes, escritores mostraram em público uma imagem exagerada, tempestuosa, polêmica. Assim foram Lord Byron, Baudelaire, Voltaire, Oswald de Andrade e muitos outros. Não é somente uma forma a mais de conseguir a atração de leitores, mas também aquele momento no qual Quixote invade o mundo de Cervantes e a personalidade da criação toma conta do criador. O autor britânico Martin Amis decidiu que sua personalidade pública é similar a do nosso popular Seu Lunga. Polêmico e pronto para qualquer confronto, Amis gera notícias e notícias que discutem suas afirmações, algumas vezes disparatadas. Em uma das suas, durante um programa cujo tema era a literatura infantil, soltou que jamais se aventuraria por gêneros que limitariam o seu texto. Não precisou – e a polêmica nasce da falta de explicação – de mais nada. E nós fomos procurar uma autoridade do gênero no Brasil, Julia Moritz Schwarcz, editora responsável pela Companhia das Letrinhas, o selo da Cia.das Letras dedicado à literatura infanto-juvenil. Fizemos um passeio por alguns temas atuais, temas que podem ser lidos quinzenalmente no blog da autora:http://www.blogdacompanhia.com.br/category/colunistas/julia-moritz-schwarcz/


Aletria: A recente declaração de Martin Amis parece reproduzir um preconceito em relação à literatura infanto-juvenil, apesar do gênero ter sido praticado por autores como Robert Louis Stevenson, Nathaniel Hawthorne ou Lewis Carroll. Como uma editora especializada em autores do gênero pode combater este preconceito, especialmente expressado por alguém da importância de Amis?

Julia Moritz Schwarcz: Acho que Martin Amis foi bastante agressivo e até esculachado em sua declaração, e por isso muitas pessoas não o levaram realmente a sério. No entanto, ele expressa um preconceito que existe com relação à literatura infantojuvenil. Muitas pessoas, principalmente leitores, acreditam que, para as crianças, o mais importante seja a história e não a forma como é narrada, ou seja, a literatura propriamente dita fica de fora. Mas é claro que existem inúmeros escritores da melhor linha escrevendo para crianças, e que defendem a qualidade da literatura infantil. Na verdade esse é um gênero que se afirmou há algumas décadas, primeiro fora e depois também no Brasil (por aqui, o florescimento dos bons livros infantis e juvenis se deu, por incrível que pareça, em pleno regime militar). Tanto existem trabalhos acadêmicos sobre o assunto, quanto a importância dos números dessa fatia do mercado editorial tem crescido consideravelmente com a consolidação dos planos de governo. Acho que o papel da Companhia das Letrinhas nessa questão é editar autores sérios, de qualidade, que comprovem sempre como a literatura infantojuvenil não é necessarioamente inferior àquela produzida para o mercado adulto. E, claro, a editora deve também tratar essa sua linha com a mesma seriedade dedicada à outra.

Aletria: Por outro lado, a declaração de Martin Amis pode ser interpretada contra qualquer autor de gênero, seja infanto-juvenil, ficção científica, horror, que escrevem para um público mais específico e de maneira mais comercial. Seria este o alvo mais específico de Amis?

Julia Moritz Schwarcz: Amis diz que a literatura deve ser completamente livre. Mas acho que, por um lado, é mais difícil escrever para as crianças, uma vez que os autores não vivem mais essa fase da vida e não sabem como suas palavras e ideias vão ser encaradas pelos pequenos. E, pensando em técnica literária, é até um desafio exercitar os diferentes gêneros. Enfim, não sei quem o Amis estava de fato querendo atingir... 

Aletria: Discutir literatura infanto-juvenil é discutir a formação dos nossos leitores. Uma polêmica que está ocorrendo é a polêmica Monteiro Lobato e Caçadas de Pedrinho. Enquanto politizam a discussão, a questão que parece mais relevante é: quem escolhe os livros e quem os ensina. Desde ponto de vista, qual é a sua posição em relação à polêmica? 

Julia Moritz Schwarcz: Realmente, professores e pais são fundamentais na vida de um livro infanto-juvenil. Salvo algumas exceções, os livros para crianças vendem relativamente pouco nas livrarias e por isso dependem das adoções. Muitos pais, professores, pedagogos e editores se preocupam com a abordagem de temas espinhudos — como a homossexualidade, por exemplo — e diversas vezes carregam seus próprios julgamentos, traumas e complicações nessa leitura. Tendem também a evitar que as crianças enfrentem sentimentos fortes e situações desafiadoras — como o terror e o medo — na leitura de histórias. Felizmente, as crianças não reagem a esses sentimentos da mesma maneira, e, no mais das vezes, sentem-se mesmo atraídas a eles. Bruxas, lobos e monstros são tão apetitosos quanto as cenas em que essas criaturas são mortas, com requintes de crueldade, para nunca mais voltar. É uma maneira de se exorcizar o medo — usando a imaginação. Por isso me preocupo com a importância da censura adulta na edição de um livro para crianças. Com tantos “não se deve” ditando as normas, e uma boa dose de superproteção, muito dessa função da narrativa, a de aliviar a alma humana, vai se perdendo. Hoje essa barreira é menos significativa do que costumava ser, mas livros polêmicos em sala de aula, hum… complicado.

Aletria: Outra polêmica recente ocorreu nos Estados Unidos, quando uma edição da obra de Mark Twain, “As Aventuras de Mark Twain” foi editada, a palavra “nigger” substituída pela palavra “slave” para o uso em salas de aula. A literatura tem uma história de apropriações e versões modificadas para públicos específicos, sendo alguma delas clássicos como as versões de Shakespeare de Charles Lamb. Qual é a sua posição neste mundo? É preciso preservar o original a qualquer custo, ou adotar a posição de Borges (o original não fiel à cópia)? 

Julia Moritz Schwarcz: Como disse Ana Maria Machado, os clássicos são “as tais obras que guardam sentidos múltiplos, que não se prendem a uma única interpretação, que permitam o incrível fenômeno de parecer ter significados diversos a cada encontro. Em linguagem mais popular, obras que tenham o poder de dizer coisas distintas a cada um, de dar recados novos e diferentes a cada leitor, em cada época, em cada sociedade, em cada cultura. Ou até ao mesmo leitor em diferentes momentos de sua vida. Ou seja, que cada leitor possa se apropriar deles de modo distinto. Quer dizer, tomar posse deles, torná-los também sua propriedade, fazê-los seus — como legítimos proprietários, herdeiros desse legado”. São os livros que podem falar a todos, ensinando às crianças que existe um espaço íntimo e pessoal, povoado pela imaginação de cada um. E também são os livros que muitas vezes nos ajudam discutir questões morais e éticas com os pequenos. Não vejo problemas em se adaptar os clássicos para que um maior número de leitores possa ter acesso a ele, mas acho que, em questões como a de Mark Twain, o uso da palavra nigger poderia servir como mote para uma conversa sobre o racismo nos Estados Unidos, por que não?

Aletria: Com a chegada do livro digital, formas tradicionais de aproximar crianças à leitura, como a contação de histórias e a leitura dos pais, vai cair ser substituída por uma alternativa tecnológica? 

Julia Moritz Schwarcz: É difícil prever o quanto o livro digital vai ser incorporado à vida das crianças no Brasil. Mas acho que não substituirá o livro de papel e nem a leitura compartilhada porque tende a ser um produto completamente diferente. Os livros eletrôncos são muito mais aplicativos do que qualquer outra coisa, se assemelhando a jogos eletrônicos. E se os video-games e os jogos de computador não tomaram o lugar do livro, não acho que os e-books o farão. O livro pode ser manuseado e carregado para lá e para cá pelas crianças — são realmente delas — já os ipads e similares, não, precisam de uma autorização dos pais. E quem não gosta de ler um livro favorito no canto preferido de casa? Acho também que as crianças entendem o mundo ao seu redor e vivem a partir da ficção, e por isso nunca vão deixar de se interessar por uma história, venha ela em forma de filme, de jogo, de livro ou narrada por um adulto.


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