Obsessão

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É a partir desta palavra, de uma palavra só, assim, sem nenhuma outra para acompanhá-la e tornar seu significado mais claro, que é possível pensar dois livros. Em um deles, a obsessão de um homem, pescador, por um peixe. Em outro, a obsessão de um homem por uma baleia. Pra quem já leu, sabe que os livros citados são “O velho e o mar”, do escritor norte-americano Ernest Hemingway, e “Moby Dick”, do também norte-americano Herman Melville.
            Obsessão significa ideia fixa, e ideia fixa é o que tem Santiago, ao pescar um grande peixe, em alto-mar, após mais de oitenta dias sem pescar nada. E ideia fixa é também o que sente Ahab pela baleia branca Moby Dick, desde o momento em que esta lhe arrancou uma perna. De um lado, uma obsessão pelo simples instinto de sobrevivência, de pescar para ter o que comer, mas que se torna uma ideia fixa muito mais forte pelas condições externas a esta pesca. E, de outro lado, uma obsessão vingativa, de revanche mesmo.
            A história de Santiago, em “O velho e o mar”, pode ser pensada também como uma história de perseverança, antes de ser pensada como uma obsessão. Perseverar é persistir, é continuar, é não parar de fazer aquilo que se está fazendo. Conservar-se firme e constante. E é isto que faz Santiago, com a ideia fixa (obsessão) de pegar aquele peixe.

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            Eram oitenta e quatro dias sem pescar nenhum. Santiago até recebia ajuda de um menino-pescador-da-vila. Mas naquele dia resolvera ir sozinho a alto-mar. Desistir não era possível. Era preciso continuar enfrentando o mar como se pescar peixes diariamente fosse a rotina. Não foi nos últimos quase três meses, mas aconteceu naquele dia. No dia em que um peixe muito grande abocanhou a isca lançada por Santiago. E de lá não soltou mais. Travava-se, ali, uma luta em que sairia perdedor aquele que cansasse antes.
            Cansou o peixe. Depois de três dias. Três manhãs e três noites puxando e repuxando a linha. Alimentando-se do que era possível – ou impossível mesmo. Até que o peixe se rendeu. E Santiago amarrou-o ao barco, em toda a extensão do barco, e começou o trajeto de volta. Até que alguns tubarões começassem a circundar o barco e a atacar o peixe já morto, atraídos pelo odor que dele saía do peixe – morto e muito machucado por tentar se desvencilhar da isca por três dias.
            A volta, para Santiago, torna-se outro duelo. Contra tubarões. Vários tubarões. Que pouco a pouco vão estraçalhando todo o peixe. Uma luta que vai sendo engolida por tubarões. Uma persistência que vai sendo engolida por tubarões. Uma obsessão que se encaminha para terminar dessa forma.
            Santiago consegue voltar ao vilarejo, onde é recebido pelo menino que lhe acompanhava muito. Fraquíssimo, o velho é levado pelo menino para se deitar. Simplesmente para apagar e recuperar suas forças, que talvez tenham ficado no mar. Na luta contra o peixe. No duelo contra os tubarões. Enquanto o menino cuida do que sobrou do grande peixe, a carcaça.
            Enquanto isso, em “Moby Dick” o leitor se depara com Ahab, o dono do navio “Pequod”, que parte mais uma vez para alto-mar em busca, única e exclusivamente, de Moby Dick, a baleia branca, como é conhecida. E se para os tripulantes do Pequod é interessante capturar qualquer baleia que possa oferecer o âmbar-gris – o que trará ouro a todos –, para Ahab a única baleia que interessa é Moby Dick.
            A história é narrada por Ismael, um dos tripulantes escolhidos para o Pequod, que fica impressionado com a obsessão do capitão pela baleia branca. Obsessão que levará Ahab para um final trágico, como não poderia deixar de ser. Se Moby Dick lhe arrancara uma perna, fora por puro instinto. Se Ahab desejava mais do que tudo matar Moby Dick, era por puro sentimento de vingança. Ismael ainda foi um dos tripulantes que sobreviveram após o “duelo final” entre o animal (e o instinto) e o capitão (e o racional).
            “O velho e o mar” e “Moby Dick” apresentam ao leitor histórias que mexem, que provocam este sujeito-leitor a partir do caráter de mistério que se instaura na narrativa. Conseguirão, os personagens principais, alcançar seus maiores objetivos? Até que ponto são válidos estes objetivos? E, mais ainda, até que ponto cabe a alguém decidir por outro o que é válido ou não de se tentar conquistar?
            Se na obra de Hemingway nos deparamos com a dor de Santiago, com a fome de Santiago, com o cansaço de Santiago (que em determinado momento já beira a loucura), e se ainda aqui nos deparamos com todo o cuidado do menino para com o velho, no final da história, na obra de Melville somos apresentados ao sentimento também de dor, de Ahab e de Moby Dick. Uma dor corpórea, sim, mas muito mais orgulhosa por parte do capitão, que ainda nutre um ódio tão grande da baleia branca que por vezes incomoda o leitor, fazendo com que este deseje tudo de mal a este homem quase-louco.
            Duas narrativas que inquietam. Como toda boa literatura deve fazer. Inquietar o leitor e levá-lo a se confrontar com os sentimentos mais primordiais de sobrevivência.

Ítalo Puccini. 


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