Leitora de mim

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Por Ana Paula Kinas Tavares

Na maciez da capa prevejo a asperidade da leitura. As primeiras palavras me soam confusas e dispersas. É no virar das primeiras folhas que me cubro de preocupações. Paro um instante, fecho o livro, quero a paz da minha vida “real”, mas já não posso me livrar da narrativa. Penso no escritor, aquele sujeito distante que me escreveu tais letras sem me conhecer, e assim mesmo me prende, bate-me, e me tira o ar. Volto à última página lida, releio e prossigo. Meu coração acelera e a história vai se criando com minha leitura. Vejo meus pais, meu namorado, até uma professora da escola primária. Ouço Mozart como plano de fundo do choro do meu irmão caçula. Fico atraída com o cheiro de bolo de fubá, entro na minha casa da infância, deito no colo do meu avô. Ando de bicicleta, caio, cato a ferida dias depois. Durmo na rede, passeio de barco, dirijo um fusca. Preciso decidir entre a estrada da família e a da aventura, peço ajuda. E uma lágrima cai na página 26.
Quero parar, libertar-me da história, das lembranças, reflexões e sonhos. Sinto-me por ora marionete dessas frases unidas. E num golpe de um ponto de interrogação, tomo as rédeas. Agora sou eu quem determina o percurso e o destino, penso eu. As portas se abrem aos montes, nas janelas curiosos e começo a temer meu destino. Leio vagarosamente cada palavra, receosa de mal compreender e acabar caindo numa armadilha gramatical. A mão de minha melhor amiga aparece no começo de um capítulo e o medo vai cessando. Devoro as páginas, dou risadas. Tenho vontade de escrever, como se o livro fosse uma carta e eu precisasse responder. Em voz alta dito ao vento. Pauso meu texto para seguir com minha vida lida.
Em outra pausa, imagino o fim da história. Penso em abrir nas últimas páginas e matar a curiosidade, só então me dou conta de que não há fim. O escritor não sabe que fim dar, os mais sábios sabem que não têm esse poder. Os escritos não estão finalizados, vão se completando quando me tocam, quando eu os leio e os sinto. E como sinto, sinto tanto. As páginas vão passando, o livro chegando ao fim e meu coração aperta. Lágrimas medrosas escorrem pelo meu rosto, embaçam meus olhos e atrasam o fim da leitura. Talvez seja de propósito essa emoção nos instantes finais, não só para que a história se tatue em mim, mas para que se prolongue. Eu mesma não quero que acabe, quero a proteção do toque da capa, a ingênua ideia de que é só ficção e ficará tudo bem.
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Texto produzido para a disciplina "Literatura Infatil e Juvenil" (2° ano de Letras Licenciatura) da professora Sueli Cagneti , a partir da proposta de ensaio do filme "A história sem fim", já resenhado e ensaiado neste blog no link abaixo.


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