Resenha de O cântico dos cânticos: uma velha nova história

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Nicole de Medeiros Barcelos

Nós temos contado histórias desde o princípio da nossa existência. Antes que as palavras estivessem convencionadas pelo uso, ou dicionarizadas e gramatizadas nos livros, a humanidade já dava cor às suas narrativas de diferentes formas: em suas paredes, em suas danças, teatros, rodas de contação... Nunca realmente deixamos nada disso “para trás”, mas nossas formas de materializar esse ato tão próprio ao humano certamente se reinventaram no curso dos muitos anos que nos separam (ou nos unem) aos nossos antepassados.

Em “O cântico dos cânticos”, Ângela Lago explora as possibilidades narrativas em diversas dimensões da experiência estética: da profundidade de suas ilustrações à própria maneira com que podem ser (física e metaforicamente) lidas por aqueles que ousarem abrir uma de suas capas, há muito a explorar pelos meandros da história – ou histórias – enredada por Lago.

Nesta obra, independentemente da face que segure para si, o leitor acaba encarando a mesma capa dourada estampada pelo título em duas meias luas. É tudo parte do jogo que o livro começa a propor antes mesmo do primeiro virar de páginas – isso porque O cântico dos cânticos pode ser lido de trás para frente, de frente para trás, em pé ou de cabeça para baixo, e por onde mais se desejar. Aqui não há em cima ou embaixo, ou frente e trás, a bem da verdade. Estamos livres para escolher que histórias queremos ver contadas.


Engendrada de maneira circular em uma sintaxe visual intrigante, pode-se dizer que a narrativa adota duas perspectivas básicas, dependendo da “ponta” em que se comece a lê-la: de um lado, a da personagem feminina e, do outro, a da personagem masculina. De ambos os lados, porém, acompanhamos narrativas sobre encontros, desencontros, sobre o amor, a ilusão amorosa e suas consequências, às quais o próprio leitor dará os sentidos e significados diversos a partir de sua(s) leitura(s).

Ângela Lago consegue criar tal efeito pois as belíssimas imagens que contam essas histórias foram criadas a partir de uma estética inspirada pelo trabalho de Maurits Cornelis Escher, bem como pelas tendências da arte impressionista (como Uma tarde de domingo na Ilha de Grande Jatte, de George Seurat) e expressionista (como Noite estrelada, de Van Gogh) e pela arte árabe e mulçumana. Dessa forma, o próprio texto imagético reproduz e assimila o contexto da história e apresenta ilusões visuais para o seu leitor (que não é necessariamente apenas o infantil).

A beleza da narrativa em si também encontra outras motivações. Muitos provavelmente talvez concordem que o título da obra – O cântico dos cânticos – soa um tanto familiar. Isso porque o poema bíblico de mesmo título de fato foi uma das inspirações da autora para a criação do livro: Lago, arrebatada pela poesia desse texto da tradição cristã, e principalmente pelo seu discurso sobre o amor, resolveu contar, à sua moda, uma história tão bela quanto a sua fonte de inspiração, materializada finalmente nessa narrativa sem palavras que, porém, tem muito a dizer.

Ao estabelecer essa multiplicidade de diálogos, seja no formato do livro, na sua relação com o seu conteúdo, ou seja na construção de suas imagens, e nas relações que estabelecem intertextualmente, a autora mineira reitera o caráter essencialmente híbrido e inovador de sua obra – aqui entendendo “[...] por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2008, p. XIX).

Pois, combinando elementos conhecidos – um poema bíblico, estéticas artísticas legitimadas pela sociedade e a própria materialidade do objeto livro – Ângela Lago nos presenteia, como sempre, com uma história estranha o suficiente para nos ser muito familiar.

*Felizmente, O cântico dos cânticos, lançado primeiramente em 1993 e reeditado em 2013 pela editora Cosac Naify, foi adicionado ao catálogo da SESI-SP Editora em julho de 2018 e está de volta às livrarias!

Referências

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Edusp: São Paulo, 2008.

LAGO, Ângela. O cântico dos cânticos. Cosac Naify: São Paulo, 2013.

Nicole de Medeiros Barcelos é graduada em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa), vive se perdendo em buracos de coelho e em estradas de tijolinhos amarelos.



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