Resenha de Reinações de Narizinho: um clássico lobatiano em diálogo com a contemporaneidade

/
0 Comments

Isabela Giacomini
O livro Reinações de Narizinho foi publicado por Monteiro Lobato no ano de 1931 e é a primeira obra que compõe a série intitulada de “Sítio do Picapau Amarelo”, que veio a fazer muito sucesso tanto na literatura como na série televisiva. A importância de tal obra, assim como várias outras de sua produção, é imensurável, uma vez que leitores de Lobato são atualmente os escritores de renome que beberam dessa leitura e escritura e se influenciaram para escrever para crianças e jovens nos dias de hoje. Em Reinações de Narizinho temos várias pequenas histórias que parecem isoladas e que focam em personagens distintos, mas que estão interligadas em muitos aspectos, não somente pela linearidade narrativa, mas pela conexão dos acontecimentos no decorrer de cada aventura, seja através dos personagens ou de universos imaginativos coexistentes.

O livro inicia contando um pouco sobre a vida de Lúcia, também conhecida como Narizinho, por conta de seu nariz arrebitado, que vive no Sítio do Picapau Amarelo com sua avó, Dona Benta, e com uma criada, Tia Nastácia.  Lá também existem outras personagens como Rabicó, um porquinho de estimação que está sendo preparado para o abate na época de virada de ano e a boneca Emília, inicialmente muda, mas que com o desenrolar de diversas aventuras acaba por se tornar uma boneca para lá de falante, coisa de um tal de doutor Caramujo do Reino das Águas Claras.

E por falar no Reino das Águas Claras, é por lá mesmo que a aventura de Narizinho e da boneca Emília começa para valer. Lá elas têm contato com diversos animais aquáticos, principalmente com o príncipe escamado e com Miss Sardine, mas também com outros um tanto quanto diferentes para o fundo do mar como a Dona Aranha Costureira, a Dona Barata da Carochinha, Pequeno Polegar e tantos outros personagens de universos literários diversos.

O episódio do reino localizado no fundo do mar se mistura com a questão da pílula falante tomada pela boneca Emília e também com a chegada do primo Pedrinho ao Sítio. Cada nova história vai se entrelaçando a primeira e a segunda e assim sucessivamente, até que todos os personagens conhecidos do Sítio do Picapau Amarelo, do mundo das fábulas, das mil e uma noites, das princesas e de tantos outros lugares acabam se mesclando, formando várias histórias dentro de uma. É como se Lobato construísse uma colcha de retalhos a cada nova personagem, a cada aventura em que os meninos são convidados e a cada imaginação mirabolante que possuem.


É interessante também avaliar que a boneca Emília, ou Condessa das Três Estrelinhas ou ainda Marquesa de Rabicó, ganha um espaço muito significativo na casa. Dona Benta e Tia Nastácia que duvidavam das imaginações infantis acabam se surpreendendo com tudo que pode acontecer se transportando para outros universos e perspectivas, seja usando o pó de Pirlimpimpim ou não. Primeiramente o episódio de uma boneca falante as assusta, mas com o tempo se torna natural e imprescindível para suas relações e para os momentos de convivência, principalmente nas decisões, nas novas ideias e nas contações de histórias antes de dormir. A boneca ganha tanto espaço que parece por vezes a protagonista, enquanto na verdade esse papel seria de Narizinho. É nesse livro que a síntese de toda a formação do Sítio é trabalhada, de como cada personagem passa a integrar essa grande família, de como os malvados aparecem e o que cada um faz para ganhar o coração da vó bondosa que é Dona Benta.

Lobato traz ainda um traço fortíssimo que é o revisitamento de outras narrativas, sejam elas orientais ou ocidentais. Princesas com Branca de Neve e Cinderela entram em cena, assim como Barba Azul, Capitão Gancho, Soldadinho de Chumbo, Sininho, Peter Pan, Chapeuzinho Vermelho, Aladim, Simbad, Sherazade, Pinóquio e tantos outros. Essa fusão de diferentes esferas literárias entra em comunicação de uma maneira natural e encantadora e permite que o leitor associe coisas já lidas a algo novo e a outro contexto.

É justamente por essa grande mistura de histórias que Lobato é trazido para a contemporaneidade em que a questão da autoria é posta em cheque, uma vez que todos os textos estão repletos de outros discursos e de falas e pensamentos de outros indivíduos. É também por suas críticas já existentes nessa e em outras de suas obras que vemos alguns tipos de preconceitos e de ideologias serem desconstruídas, como a não violência aos animais, o combate ao desmatamento, a repreensão pela corrupção e trapaça, o preconceito racial ser refutado, a arte estar desassociada de uma concepção de falta de trabalho e tantos outros pontos que os próprios personagens colocam em embate. Alguns, provavelmente não leitores de Lobato, mas apenas de alguns de seus excertos fora do global, ainda dizem que ele precisa ser banido dos espaços educacionais por ser preconceituoso, enquanto na verdade essas ideias são desmanchadas na própria narrativa pelo comportamento de suas personagens, ainda que ele tenha escrito suas obras na primeira metade do século XX. Isso mostra o quanto a frente ele pensava e o quanto ele refletia sobre sua realidade, enquanto grande parte da sociedade de sua época e contexto naturalizavam ações amplamente repreensíveis na atualidade.

Isabela Giacomini é graduanda em Letras (Língua Portuguesa e Inglesa) pela Univille, atua como bolsista no Prolij e vê na literatura lobatiana uma oportunidade para voltar a ser criança. 



Posts relacionados

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.