História sem fim da literatura, por Ítalo Puccini

/
3 Comments
O paradoxo da leitura é que o caminho em direção a si mesmo passa pelo livro, mas deve continuar sendo uma passagem. É uma travessia realizada pelo bom leitor, que sabe que os livros são portadores de uma parte dele mesmo e podem lhe abrir um caminho, se ele tiver a sabedoria de não parar (BAYARD, 2007).

CAMINHOS DIFERENTES, RETORNOS PRÓXIMOS: BASTIAN E VÍTOR

Bastian e Vítor são dois personagens bastante próximos de duas narrativas diferentes, porém próximas se analisarmos as trajetórias destes personagens. Bastian e Vítor são dois sonhadores-solitários (creio não ser arriscado afirmar que todo sonhador é solitário) que fazem uso de dois meios diferentes para um mesmo fim: afastar-se da pressão mundana, o que acarreta, conseqüentemente, num conhecer a si mesmo.  
            Bastian é o personagem principal de História sem fim, do alemão Michael Ende, também existente em filme, este dirigido por Wolfgang Petersen. Bastian é o herói de uma narrativa em que retorna ao ponto de onde partiu, fortalecendo-se no durante, nas diversas situações-problema pelas quais passa na aventura que aceita viver (adianta-se aqui, aventura aceita no momento em que ele abre um grande livro que pouco antes “roubara” de um senhor dono de uma livraria antiga).
            O problema inicial do herói Bastian é uma perda. A perda de sua mãe. Perda esta acentuada pela falta de uma relação mais íntima com seu pai, e que reflete no comportamento do menino na escola, local em que se sente também muito abandonado.
            Na seqüência de situações-problemas que enfrenta na narrativa, Bastian precisa tomar a difícil atitude de se despir de tudo ao que é apegado, ou seja, de se desfazer de seus pertences e de se dispor a enfrentar tal perda (e outras que virão pela frente), devendo levar consigo apenas um amuleto.
            Ainda, em determinados momentos de sua trajetória-de-herói, o menino se depara com outras condições de escolha, nas quais o desapego será bastante sentido novamente. Ele precisa saber fazer uso da sabedoria, escolher entre bem e mal, acreditar muito em si, conhecer quem se é, saber perguntar e responder, e ainda, para finalizar, vive dois fortes momentos: uma espécie de ritual de passagem, no qual enfrenta o seu lado escuro da vida, e no qual também vê o filme de sua vida passar, o que desencadeia no outro forte momento, a morte desse seu lado escuro para que o claro que existe em si sobreviva e ele possa retornar para o lugar de onde partiu.
            Este renascer se dá somente quando Bastian toma outra importante decisão: nomear. Não só dar nome a algo, mas dar uma vida nova a este algo (no caso, à princesa do mundo da Fantasia). A força da palavra deixa, então, sua marca maior na narrativa.
            Já Vítor é o personagem de O sofá estampado, escrito por Lygia Bojunga. Vítor não é herói de um reino (talvez, no máximo, é herói para sua avó e para si mesmo). É excessivamente tímido. Sua própria vida por diversas vezes é colocada em risco em função da sua timidez – sua garganta que o diga, com tantos engasgos vividos.
            O heroísmo de Vítor é ter sobrevivido até o final da história. É ter superado a dor do amor não-correspondido, a vergonha em dizer uma simples palavra, a perda da sua avó, e de ter retornado para sua casa muito mais corajoso, cheio de vida vivida, e engasgando menos ao emitir qualquer opinião sobre algo.
            Assim como Bastian, Vítor sai de um lugar, percorre toda uma história, e retorna para o lugar de onde saiu. Retorna, conforme já dito, mais vivo, mais confiante em si, mais seguro do viver.
           
SER LEITOR NA ARTE DE VIVER

Bastian viveu uma aventura que existia, primeiramente, dentro de um livro. Depois, na medida em que ia lendo, sozinho no sótão da escola, essa aventura passou a existir também no próprio Bastian. A cada palavra, a cada parágrafo, a cada página virada, a cada janela fechada.  
Vítor, ao contrário de Bastian, viveu uma aventura lendo sua própria história. Mais literalmente, como um tatu, cavoucando sua própria história. Lendo a si mesmo, às suas características, às suas ações e aos seus pensares, a cada buraco cavado com afinco, com gana, com medo e com desejo.
Ambos viveram, sobreviveram, e se depararam com a obrigação de ler a si mesmos à medida que liam os mundos as suas voltas. Dois personagens leitores. Dois corajosos leitores.
Livros, sozinhos, não fazem ruídos. Acumulam pó. Livros são exigentes. Para movê-los, para extrair deles algum som possível, exige-se grande esforço. Ser leitor é colocar-se à disposição deste esforço. Bastian e Vítor provaram estar. Como leitores, eles não só foram colocados em xeque por aquilo que liam, como também tiveram que se despir de conceitos e modos de vida, e literalmente viver o que liam. Bastian, inclusive, muito me lembrou a leitura que fiz de O velho e o mar, de Ernest Hemingway, na qual senti na própria pele toda a luta do pescador com o peixe de tamanho descomunal que ele pescou em algum momento da narrativa. Recordo-me bem de ter finalizado o livro e de ter me deparado com um arranhão, antes não existente, em meu braço. Situações que só a leitura literária pode proporcionar.
Bastian e Vítor são os leitores que também foi o pescador da célebre história de Hemingway. O leitor que vive e que sente na pele o que lê, seja esta leitura uma leitura livresca ou uma leitura da vida ao redor de si. É uma leitura da força, da oposição de si mesmo ao que se é, do enfrentar e descobrir o que o viver a vida oferece em termos de leitura.
Manguel, em uma longa citação, consegue apresentar muito bem o que é esse explorar a vida em termos de leitura, que Bastian e Vítor tão bem representaram. Afirma Manguel (1997, pp. 19-20) que

Os leitores de livros, uma família em que eu estava entrando sem saber (...), ampliam ou concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras de uma página é apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo ou admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu – todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos. (...)
Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.

Ser leitor também é ser perspicaz, é ser sensível ao seu redor, às pessoas com quem se convive, às situações pelas quais se passa, interpretando o que se vive, tornando parte de si, construindo e sendo construído, por suas leituras de mundo, pelos outros, pelo mundo no qual vive e que faz girar. A leitura é interação com o mundo e consigo mesmo, num processo de evolução mútua. A literatura, através de personagens como Bastian, Vítor, e inclusive o pescador de Hemingway, proporciona ao ser humano esta evolução. É o que torna ainda mais claro a colocação de Machado (2007, p. 157), de que

(...) ‘há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar’ [frase de Ítalo Calvino]. Entre elas, a incorporação, pelo leitor, de uma rede portátil de possibilidades infinitas, capaz de nortear todos os gestos de sua existência. E isso só se consegue pela linguagem literária, pois o escritor, como nos recorda Calvino, ‘realiza operações que envolvem o infinito de sua imaginação ou o infinito da contingência experimental, ou de ambas, com o infinito das possibilidades lingüísticas da escrita’.

E uma opinião de Lajolo é aqui colocada para entrelaçar ainda mais a atitude de ser leitor com as características de Bastian e Vítor já apresentadas. De acordo com a autora, (1999, pp. 106-107),

Cada leitor, na individualidade de sua vida, vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando. Cada leitor tem a história de suas leituras, cada texto, a história das suas. Leitor maduro é aquele que, em contato com o texto novo, faz convergir para o significado deste o significado de todos os textos que leu.

O PORQUÊ DA LITERATURA

As narrativas em que Bastian e Vítor são os personagens se apresentam como literatura porque permitem ao sujeito-leitor a liberdade e o prazer de conhecer um pouco mais de si mesmo. A leitura literária é uma forma de leitura existente, e é a leitura em que essa liberdade e esse prazer são ilimitados (ao menos devem ser).
A literatura se faz presente em História sem fim e O sofá estampado porque nelas a esperança, a fantasia e o sonho são permitidos e imensamente explorados. Porque o leitor é aquele proposto por Barthes, que levanta a cabeça ao ler, que se pergunta o que é aquilo que ele está lendo, que se apaixona, que sente, salva, se despe, e que vê sua vida sendo mudada a cada ponto final e início de frase, seja na ficção, seja na vida real.
É a literatura apresentada por Machado (2007, p. 58):

Ela [a narrativa] é importante, antes de mais nada, para habituar a um exercício de se colocar no lugar do outro – coisa que as obras de ficção narrativa fazem admiravelmente, ao despertar mecanismos psíquicos de identificação e projeção, permitindo que o leitor compreenda idéias alheias, se solidarize com personagens completamente diferentes de si, tenha compaixão por quem é diferente, perceba que existem pontos de vista variados para encarar qualquer assunto. A narrativa de ficção rompe a indiferença individualista e acostuma o leitor a sair de si mesmo e viver outras vidas – e isso lhe deixa a bagagem de uma experiência emocional riquíssima de abertura para o outro. Afinal de contas, é esse o fundamento de qualquer comportamento ético – ser capaz de pensar nos outros ao fazer as coisas ou deixar de fazê-las e medir as conseqüências das próprias ações sobre outras vidas.

O nada presente em História sem fim, que torna eminente a destruição do reino da Fantasia, aquela onda de escuro, de gritos, de dor, é o vazio dos dias de hoje no mundo existente no Planeta Terra. E, se naquele mundo o amuleto do menino Atreyu (ou simplesmente Bastian?) era um colar no pescoço, neste mundo-mundano o nosso amuleto para enfrentar este nada, este vazio que nos domina a cada dia, pode ser o livro (particularmente, acredito que o seja). Ele – o livro – pode ser a chave para o renascer, para a nomeação de algo novo, de uma nova vida e de um novo modo de viver esta vida, esta história sem fim. Seria o livro silencioso que cresce em ruídos quando explorado pelo leitor corajoso. Seria não só o livro com páginas já escritas e prontas para a devoração do leitor, mas aquele livro a ser escrito, dia-a-dia, por cada personagem desta ficção que também pode ser a vida.

Referências bibliográficas

BAYARD, Pierre. Como falar dos livros que não lemos? Trad. Rejane Janowitzer. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1999.

MACHADO, Ana Maria. Balaio: livros e leituras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


Posts relacionados

3 comentários:

Eduardo Silveira disse...

é, ítalo, concordo.
o livro é o nosso Aurin. ^^
bonito entrelaçamento!

ítalo puccini disse...

nosso aurin.

adorei essa, edu!

Daniela Dias Ortega disse...

Achei muito bom o seu trabalho!
Estou fazendo um trabalho sobre a narrativa na História Sem Fim.
Fique tranquilo que estou abordando outros aspectos!
Quando ficar pronto, nesta semana, de repente poderia te mostrar...
Um grande abraço!

Tecnologia do Blogger.