Sobre guerras, estrelas e crianças

/
1 Comments
por Cleber Fabiano da Silva


In tempi come questi la fuga é l’unico mezzo                                                                                                                                          per mantenersi vivi e continuare a sognare[1]

                                                                                                                            
                As estrelas fazem pensar... A gente entende muitas coisas quando olha as estrelas.
            Os livros destinados aos pequenos tornam cada vez mais tênues a classificação do que seja necessariamente do âmbito infantil, juvenil ou adulto. Eles realizam procedimentos estéticos e discursivos que se interligam nos meandros da literariedade, numa constelação quase infinita em que se pode ver, imaginar, sentir, refletir, enfim, entregar-se ao que de mais humano possa existir.
            E nos territórios dos homens, as fronteiras cercam, guardam seus tesouros, verdades e identidades; para mantê-las o indivíduo luta, nesse embate nasce a guerra. Com ela, o desejo crescente de tornar-se vitorioso, custe o que custar, para vencer é preciso superar todas as perdas. Qualquer exército, com o maior e melhor arsenal, contabiliza derrotas.
            A guerra continua... Mas em todas as guerras há imprevistos. Esses imprevistos nos impulsionam a sonhar, trazem-nos esperança. São linhas de fuga, fissuras minúsculas propícias ao escritor, artista lutador que, quixotescamente, realiza outra grande batalha: a de falar aos corações humanos. Duas estrelas cintilam no universo das obras infantis recém traduzidas em nosso país. Nas duas, o conflito. 
            A Primeira Guerra Mundial serve de contexto para o brilhante: O menino, a guerra e a bola de Jean-Baptiste Cabaud. Em sua territorialidade bélica a marca presente do frio e das vozes loucas que chegavam aos ouvidos dos soldados: Em frente! A guerra deve continuar! Atacar! Atacar! Embora datada, pouco se sabe dos detalhes entre as nações inimigas, dos brasões e flâmulas, da baixa nas corporações, do desamparo das mães, do que mudou na vida das viúvas ou dos prejuízos patrimoniais. Importa como matéria de poesia, a presença de uma voz aflita que grita pelo filho. O menino que corria atrás de uma bola vermelha em meio ao campo nevado pelo rigoroso inverno.
            O momento de plenitude suspenso pela magia – da vida ou da literatura? Os exércitos dos dois lados param, congelam as nuvens do céu, estancam os cavalos empinados com as patas suspensas no ar. Na arte de bem contar, um soldado saiu correndo, lançou-se sobre um velho oficial e, tapando-lhe a boca com a mão, enfiou a baioneta na sua voz louca. O menino segurava a bola, abraçava-a com força, ela era o seu tesouro.
            As crianças fazem pensar... A gente entende muitas coisas quando lê livros para crianças.
            No firmamento literário mais astros reluzentes: Davide Cali e Serge Bloch com o livro O inimigo[2]. Aqui, nem tempos nem espaços demarcados, o território é nômade. Em algum lugar que poderia ser um deserto, há dois buracos. Nos buracos dois soldados. Eles são inimigos...
            O narrador apresenta-nos a sua trincheira, conta tudo o que sabe sobre o seu adversário. O inimigo não é um ser humano. Sei tudo isso porque não sou estúpido. Li no manual. Na verdade, qualquer que fosse a trincheira ou o compêndio, a impressão seria a mesma. Não importa o lado, em qualquer guerra, no manual do outro o inimigo a combater tem o meu rosto.
            O frio também aparece por aqui. Junto dele, a fome. Sentimos fome. São as únicas coisas que temos em comum, o inimigo e eu. Às vezes penso que o mundo não existe mais. Os elementos concretos remetendo-nos à humana condição; caem por terra as utopias, os louros da vitória, as honras e condecorações. Nada para nos distinguir dos homens das cavernas, dos indivíduos de outros tempos e espaços. Somos feitos de idêntica matéria, possuímos as mesmas necessidades.
            Nosso valente recruta está só desde que seu companheiro Michel morreu. Em nossas solidões a certeza de que o inimigo está ali, mas nunca é visto. O inimigo também deve estar sozinho. Se há guerra a culpa é dele... É preciso que ele seja o primeiro a cessar fogo, e eu, nesse caso, não o mataria.
            Na arte da metáfora, muitas possibilidades. Nas batalhas esperamos o aceno da bandeira branca que virá da parte em litígio. Então o que ele está esperando? Aquele que sobreviver terá ganhado a guerra. Ele poderia me enviar uma mensagem: vamos acabar com a guerra agora. Se ele enviasse essa mensagem, eu aceitaria imediatamente.          
            O mais monstruoso inimigo está tão perto, talvez dentro de nós mesmos. Escondemos em nossas trincheiras o arsenal bélico das palavras que matam e ferem. No entanto, há a literatura, as estrelas e as crianças, mal grado desertos, travessias e fissuras... Procuramos cruzar a fronteira dos nossos corações com um grande desejo de paz. Se o inimigo olhasse as estrelas, talvez entendesse que a guerra não serve para nada e que é preciso terminá-la. Se nós olhássemos para os livros infantis, talvez entendêssemos que a guerra não deveria nem ter começado.

Referências: 

CABAUD, Jean-Baptiste e BERNARD, Fred. O menino, a guerra e a bola. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CALI, David. O inimigo. São Paulo: Cosac Naify, 2008.


[1] “Em tempos como estes a fuga é o único meio de manter-se vivo e continuar a sonhar” Extraído do filme Mediterrâneo – direção: Gabriele Salvatores, Itália, 1991.

[2] Em 2009 recebeu o prêmio de Altamente Recomendável da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil na categoria tradução ou adaptação para criança. 


Posts relacionados

Um comentário:

Amanda disse...

Que texto maravilhoso!

Beijos
Amanda

Tecnologia do Blogger.