Quando o livro é contação

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Quando o livro é contação[1]

                                                   Luisa Marinho Antunes[2]

Imagine-se uma praça e o povo entusiasmado, todo à volta do “contador de casos”: é assim a contação no Brasil, que anima as gentes e deixa os olhos abertos de espanto. “Mas eu povo peço licença/ Para lhes apresentar” E o contador começa o encantamento.

O livro de Fernando Vilela, Lampião & Lancelote (2010), começa desta forma para nos abrir um mundo mítico em que o cavaleiro Lancelote luta no sertão com o cangaceiro Lampião por artes da feiticeira Morgana. Não bastava sermos cativados pela história, o livro possui gravuras em bronze e filigranas, conjugando o texto com uma experiência visual que o júri do Prémio de Bolonha considerou como o aroma dos frescos italianos. Vencedor de seis prémios prestigiados, o livro representa o encontro entre a velha Europa medieval, lendária, regida por uma ética guerreira e de amor cortês, e o Brasil dos cangaceiros, dos cabras armados, das mulheres companheiras. A espada nua contra o rifle poderoso. Os cavaleiros da Távola Redonda e as suas damas, Viviane e Guinevere, contra o bando do Lampião (no qual não falta o Português – se calhar fugiu da Nau Catrineta), mais a Dadá Maria Pancada, Inácia Maria Jovina e a amada de Lampião, a Maria Bonita. Um de armadura e montado em garboso cavalo e o outro de couro, ar caipira, chapéu à Napoleão, no seu jegue (que é o nosso burrinho): “quem é você/No meu caminho ó faceiro/Não empesteie o meu ar”, grita Lancelote. “Ó donzelinho enfeitado/Todo coberto de ferro/ …Se eu quiser te mato agora”, replica Lampião.
E aí começa a guerra, guerra feia, de morte matada, e de honra. Já são muitos os feridos, quando se ouve uma risada. Risada? No meio da guerra? Quem mofa de nós, quase imortais, empenhados nas nossas façanhas? A pergunta é minha, não do autor, mas para lá fui conduzida por ele.
De repente, apercebem-se que trocaram de roupa, Lampião está de armadura, Lancelote veste como cangaceiro. Lampião saca da sanfona e começa tudo a dançar, reinventando os passos  - Maria Bonita com Lancelote, Lampião com Guinevere. Está armada a reinação. Se este não é um caso, meus senhores, um caso de espantar, lembrem-se dos que se juntaram à esquina, a tocar a concertina, a bailar o solidó. A música, as palavras e a batalha acabaram em “geleia/Da magia europeia/Com a ginga brasileira.” Fica de fora o batuque de África, direi eu, meu povo, e teria sido bonito ver o rei do Congo entrar por ali adentro também ele a querer bailar e ficava o Brasil completo num feitiço do sertão.

Lampião & Lancelote
Autor Fernando Vilela
Editora Cosac & Naify
Ano 2010



[1] Publicado originalmente em : Semanário A Tribuna, Funchal, O Liberal, n. 609, 2 de Julho de 2011, p. 5.
[2] Professora de Literatura da Universidade da Madeira – Portugal.


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Um comentário:

Anônimo disse...

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